Pandemia, trabalho versus economia: o que não é tão novo quanto parece, por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

Empresários brasileiros julgam que não devem eles suportar ônus algum com as perdas da atividade econômica: para isso se tem governo e trabalhadores.

Montagem do DCM

Pandemia, trabalho versus economia: o que não é tão novo quanto parece

por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

O debate atual no mundo e no Brasil sobre saúde pública tem se acirrado especialmente  em relação à principal medida que todos os governos dos países afetados pelo CONVID-19 têm tomado: o isolamento social, com forte impacto nas economias nacionais com a suspensão da maior parte das atividades econômicas. À parte dos deboches, do desprezo e da completa incapacidade política de governar do Presidente brasileiro, e do fato de que inúmeras autoridades sanitárias estaduais e municipais demonstraram mais racionalidade  sobre a dimensão de uma pandemia como a que se enfrenta,  o espaço mediático tem sido tomado por empreendedores que também resolveram opinar sobre o assunto. Sem exibir nenhuma credencial técnica de conhecimento sobre pandemias e como se dá seu combate dizem, em resumo, que o País quebrará, que a morte de contingentes de 7 mil pessoas não se constitui em argumento capaz de prolongar o isolamento e impedir que todos voltem aos seus postos de trabalho. Ou retornam, e assumem o risco de contraírem uma doença de baixa letalidade, ou perderão seus empregos. O recolhimento determinado pelas autoridades sanitárias é visto como férias, como descanso.

Não deveria surpreender esta posição de parte dos empresários; daqueles que renegam e combatem o que se peleja desde a República de Weimar: um compromisso mínimo civilizatório entre capital e trabalho. Com o golpe de 2016, o tema ganhou em sua atualidade. No seu O Capital, I, Marx chama a atenção das jornadas de trabalho e das condições físicas e de saúde de quem deveria trabalhar 16 horas por dia, e, durante a season, 30 horas ininterruptas, até a morte, como a “modista Mary Anne Walkey”, que trabalhava para “uma senhora com o agradável nome de Elise”: morreu de sobretrabalho (overwork), para supresa de Elise, “sem que tivesse terminado a última peça”. É também a partir deste ponto da obra, que Mark descreve a relação do capital do século XIX com a jornada laboral: “apropriar-se do trabalho 24 horas por dia é o implso imanente da produção capitalista”. E será o mesmo capital que silenciará sobre os excessos do sistema, “sobre seu abuso em direção a um prolongamento da jornada de trabalho cruel e inacreditável”. Tempo livre para as “funções sociais, para o livre jogo das forças vitais físicas e intelectuais “, e mesmo o “tempo livre do domingo, é pura futilidade. O capital não se importa com a  vida e duração da força de trabalho”.

A força com que a reconstrução histórica de Marx emerge atualmente parece não deixar dúvidas. O que desejam os empresários que usaram suas redes sociais para exigir que seus empregados retornem ao trabalho, mesmo sob o risco de contraírem o coronavírus? Que suas forças de trabalhos sejam utilizadas à exaustão, ainda que isso lhes custe a saúde ou mesmo suas vidas. Em primeiro lugar, abre-se o espaço para a crítica civilizatória que se pode fazer com tranquilidade contra as manifestações dos empresários. Suas palavras traduzem o desprezo que possuem por seus empregados, que lhe geram a riqueza de que são detentores. Noutro instante, estes pensamentos são reveladores de que não fossem por movimentos políticos autônomos dos trabalhadores do século XIX até hoje, estariam estes  fortemente vocacionados a viverem como Mary Anne Walkey, e perecerem no próprio ambiente de trabalho, antes de terminarem suas últimas tarefas.

As manifestações públicas destes empresários denunciam que o constitucionalismo e o estado social encontram-se diante de risco permanente. Ainda que se tenha uma epidemia descrita como o mais sério desafio econômico e político desde a Segunda Guerra por insuspeitos chefes de governos (como Angela Merkel e Emmanuel Macron), empresários brasileiros julgam que não devem eles suportar ônus algum com as perdas da atividade econômica: para isso se tem governo e trabalhadores. Deixam evidente que não fazem parte da sociedade que vivem, que não derramarão uma lágrima com as tragédias humanas, e que a democracia  econômica lhes é dispensável.

Um dos grandes momentos do estado social foi a busca de superar o cidadão político e transformá-lo em cidadão econômico. Ou seja: o homem que vota, que pode ser votado, que tem a liberdade de se expressar e de se associar também  é merecedor de ter casa, comida, cultura, lazer, saúde, e de ver sua família segura. Não se consegue esta superação sem que toda a sociedade suporte os custos respectivos. Das lições que já podemos tirar desta pandemia, uma delas revela que o vírus, contra o qual o mundo inteiro luta, tem mostrado mais sobre nós mesmos do que imaginávamos.

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima – Professor Titular da Universidade de Fortaleza.  Procurador do Município de Fortaleza

Redação

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