Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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Por que a democracia está em crise?, por Michel Aires de Souza Dias

As pessoas estão descrentes da política, não confiam mais no Estado como guardião dos direitos sociais, que protege os trabalhadores, que se preocupa com a saúde, a educação e o bem-estar dos indivíduos. 

Por que a democracia está em crise?

por Michel Aires de Souza Dias

O avanço da extrema-direita em nossa atualidade é o sinal de que há uma grande crise nas sociedades democráticas. Na Turquia vimos a subida ao poder de Recip Erdogan; na Hungria, Viktor Orbán; nos Estados Unidos, Donald Trump; no Brasil, Jair Bolsonaro. Todos eles com um discurso conservador, autoritário e intolerante. O nacionalismo ufanista, o ataque as minorias, o anticomunismo, o racismo, a xenofobia, a misoginia, a intolerância religiosa e o desprezo à democracia são formas de comportamento irracionais que caracterizam essa crise. Em Chemnitz, na Alemanha, centenas de ultradireitistas saíram às ruas contra os imigrantes, por causa da morte de um cidadão alemão. Em Charlottesville, nos Estados Unidos, supremacistas brancos saíram às ruas contra negros, imigrantes e homossexuais. No Brasil, uma onda de protestos antidemocráticos elogiava a tortura e a ditadura militar.  Aquilo que parecia ser parte de um passado tenebroso, a discriminação, o ódio e a intolerância, volta com força total ao vocabulário e ao comportamento das pessoas.

Essas manifestações de ódio podem ser mais bem compreendidas a partir do conceito freudiano de regressão. Freud entendeu a regressão como um processo de defesa que leva o Ego a um estágio anterior de desenvolvimento humano. O comportamento irracional dos indivíduos surge como produto da fuga de uma realidade insatisfatória, que produz a regressão como mecanismo de defesa. Por outro lado, o grande mal-estar que os indivíduos sentem em relação à realidade liberam seus impulsos destrutivos. Desse modo, para Freud, torna-se necessário “levar em conta o fato de estarem presente em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, antissociais e anticulturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade humana” (FREUD, 1969, p.17).

A crise da democracia hoje está ligado a uma crise de legitimidade política. As pessoas estão descrentes da política, não confiam mais no Estado como guardião dos direitos sociais, que protege os trabalhadores, que se preocupa com a saúde, a educação e o bem-estar dos indivíduos.  Contribui para isso as crises econômicas, a corrupção, as altas taxas de criminalidade e a precarização dos serviços públicos. Como avalia o sociólogo Octavio Ianni (1998), com o neoliberalismo o Estado como provedor de bens e serviços sociais perde sua função e é capturado por interesses privados. Por meio das políticas neoliberais realizam-se a desregulamentação das atividades econômicas, a privatização de empresas estatais, a privatização das instituições governamentais relativas à habitação, aos transportes, à educação, à saúde e à previdência. O poder estatal é liberado de toda responsabilidade social. Tudo isto baseado no pressuposto de que a gestão pública ou estatal de atividades direta e indiretamente econômicas é pouco eficaz, ou simplesmente ineficaz.

A crise da democracia em nossa atualidade foi causada pela cisão entre o poder e a política. O poder não está mais nas mãos dos políticos. Ela está nas mãos das grandes corporações. São elas que determinam os rumos do Estado, em detrimento dos interesses públicos.  Hoje, é muito comum que uma ação de uma grande corporação tenha mais impacto em uma Nação do que uma ação governamental.  O Estado está se tornando impotente frente as demandas das grandes corporações. Desse modo, cada vez mais as possibilidades de mudanças e transformações via instituições políticas têm se reduzido. A grande consequência disso é o ódio à democracia e às instituições políticas.

O sociólogo polonês Zigmunt Bauman (2014), em uma entrevista, comentou sobre essa perda de legitimidade. Para ele, com a separação entre o poder e a política, nós nos encontramos na dupla situação de poderes livres do controle político e da política que sofre o déficit perpétuo do poder. Daí a crise de confiança nas instituições políticas, uma vez que a política investiu nos parlamentos e nos partidos para construir a democracia como atualmente a compreendemos. Contudo, cada vez mais as pessoas duvidam que os políticos sejam capazes de cumprir suas promessas. Assim, elas procuram desesperadamente veículos alternativos de decisão coletiva e ação, apesar de, até agora, isso não ter representado uma alteração efetiva.

A grande adesão das massas ao discurso fascista aparece justamente numa época de crise da democracia. Foi assim no passado.  Na República de Weimar, berço da democracia alemã, o tratado de Versalhes impôs grandes perdas territoriais e pesadas somas em dinheiro para reparar os danos da guerra. A década de vinte na Alemanha foi uma época de grande instabilidade econômica, de conflitos internos, de hiperinflação, de desemprego, de miséria e fome. O dólar, que em abril de 1922 valia 1000 marcos em papel moeda, passou a 56000 em janeiro de 1923, a mais de 2 milhões em agosto, e a 350 milhões em setembro. Os preços subiram nessa proporção e a vida tornou-se quase impossível para a maioria da população. Jamais um país tão industrializado havia conhecido uma tal miséria, de forma que o contexto sócio-político subverteu-se em todos os seus ângulos (ALMEIDA, 1999). Foi nesse contexto histórico que o Partido Nacional Socialista chegou ao poder. Segundo o filósofo alemão Theodor Adorno (1995, p.38), ao contrário de seus adversários políticos, os nazistas foram capazes de proteger as pessoas frente às catástrofes naturais da sociedade que se abatiam sobre elas. De um modo autoritário, eles também foram capazes de controlar a inflação, a instabilidade econômica e proteger os indivíduos do medo de ficarem a margem.

Em nossa atualidade, tal como no passado totalitário, o mundo vive uma grande crise no regime democrático. Com o fim do Estado de bem-estar social, os indivíduos são abandonados à sua própria sorte. A saúde, a educação, as garantias trabalhistas, a proteção social e as políticas de bem-estar deixaram de ser responsabilidades do Estado. Já as relações de trabalho tornam-se cada vez mais precarizadas: surgiu o trabalho informal, o trabalho intermitente, o trabalho terceirizado, o subemprego, o home-office e outras modalidades de trabalho sem garantias trabalhistas. A desestruturação do mercado de trabalha não só diminui o poder de reivindicação do trabalhador, mas também desestrutura famílias, produz insegurança, e ainda gera grandes problemas sociais, como miséria, a fome e a violência. Para piorar a situação, o Estado torna-se o verdadeiro Leviatã do capital, o grande guardião que se oporá às revoltas populares e a todos os movimentos sociais que lutam por condições dignas de existência. Já o capital nacional e transnacional colocam-se como os principais financiadores das campanhas, dos partidos políticos, dos candidatos e parlamentares, transformando as instituições políticas em repartições da classe burguesa.

Se em sua época Freud observou um grande mal-estar na civilização causada pela repressão às pulsões primárias, hoje esse mal-estar estaria mais associado a uma grande insatisfação com a realidade social, política e econômica. Como argumentou o filósofo Theodor Adorno (1995, p.122), hoje o mal-estar é ainda mais abrangente do que Freud supunha: sobretudo porque, a pressão civilizatória observada por ele multiplicou-se em uma escala insuportável. Por essa via as tendências à explosão a que ele atentara atingiriam uma violência que ele dificilmente poderia imaginar. Porém, o mal-estar na cultura tem seu lado social — o que Freud sabia, embora não o tenha investigado concretamente. É possível falar da claustrofobia das pessoas no mundo capitalista, um sentimento de encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada, como uma rede densamente interconectada. Quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua densidade impede a saída. Isto aumenta a raiva contra a civilização. Desse modo, a sociedade torna-se alvo de uma rebelião violenta e irracional.

Michel Aires de Souza Dias – Doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo.

Referências

ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ALMEIDA, Ângela Mendes de. A república de Weimar e a ascensão do Nazismo. São Paulo: Brasiliense, 1999.

BAUMAN, Zigmunt  Zigmunt Bauman: vivemos o fim do futuro. Revista Época. 19.02.2014. Entrevista concedida a Luiz Antônio Giron. Disponível em <http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/02/bzygmunt-baumanb-vivemos-o-fim-do-futuro.html>. Acesso em novembro de 2020

FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

IANNI, Octávio. Globalização e Neoliberalismo. Revista São Paulo em Perspectiva. São Paulo, v. 12, n. 2, 1998. p. 27 – 44.

Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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