Por que não devemos comemorar a sentença de Julián Assange?, por Carol Proner

Pelo lado da defesa de Assange, o que fará a defesa, recorrerá para tentar corrigir a deturpada sentença? Apelará por garantías para que Julian possa viver em segurança?

Por que não devemos comemorar a sentença de Julián Assange?

por Carol Proner

Neste 04 de janeiro de 2021, movimentos políticos e sociais do mundo todo receberam com espanto a resposta da justiça britânica no julgamento contra Julian Assange em um caso emblemático para a liberdade de imprensa. Um processo já épico e que atingiu o corpo e a alma de um cidadão australiano obstinado em driblar as artimanhas políticas travestidas de razões jurídicas com o objetivo de incriminar o jornalismo investigativo e construir um novo marco punitivista internacional contra a imprensa livre.

Eis que a juíza Vanessa Baraitser surpreende com sua decisão já nos últimos minutos do julgamento: em razão do delicado estado de saúde mental e do risco de suicídio em cárcere estadunidense, sentencia contra a extradição do jornalista.

Vitória, alívio, um bom presságio para 2021, eram algumas das reações imediatas após conhecimento da decisão, mas – e já que a batalha ainda será longa – é preciso ter muita atenção, separar as coisas, apartar o aspecto pessoal dos outros direitos e liberdades em jogo e analisar com cuidado as consequências da decisão.

Ressalvando que a sentença efetivamente acolhe os pedidos da defesa para permitir ao acusado permanecer em solo britânico – em vez de ser extraditado – e que possa eventualmente até responder o processo em liberdade, o resultado da decisão é uma imensa derrota para o jornalismo britânico e um perigoso precedente a nível mundial.

Mais que isso, a sentença parece ter estabelecido um jogo de ganha-ganha ou de perde-perde, dando aos Estados Unidos tudo o que pretendiam em um processo eivado de sigilos e acusações de última hora e a Julian Assange a possibilidade de viver, ou de não morrer. De quebra, a decisão lava as mãos da justiça britânica diante de uma iminente catástrofe: a morte do acusado por adoecimento, por tristeza, por contaminação de Sars-cov-2, em razão de uma greve de fome, ou mesmo por suicídio, seguindo a trilha do amigo de cárcere, o brasileiro Manoel Santos que se matou em outubro do ano passado.

No jogo do perde-perde, as autoridades norte-americanas perderam a cabeça do acusado, e perderam, ao menos por ora, a chance de julgá-lo, condená-lo, torturá-lo e assassiná-lo em seu próprio território. De outro lado, Assange ganha a chance de não morrer e a eventual liberdade para desfrutar, após 10 anos de um périplo heroico, o convívio da mulher e dos filhos. Mas perde significativamente. A sentença o salva no minuto final, mas também o abate quando está acuado, adoecido, oficialmente desequilibrado – conforme pareceres clínicos acostados aos autos e acolhidos na sentença – um moribundo somente excepcionado por razões humanitárias, mas condenado in totum como jornalista, um jornalista excepcional que revelou os espantosos crimes de guerra do império.

A batalha será longa e nas próximas duas semanas saberemos as estratégias de lado a lado. O governo dos Estados Unidos, por vingança ou por orgulho, reivindicará o prêmio principal? Ou aceitarão o veredito percebendo que a decisão da juíza britânica é sólida, baseada em fatos e informações incontroversas e que dificilmente será modificada em sede de apelação?

Analistas apostam que a vitória da acusação, mesmo com o perdão à vida do condenado, já é inaudita e de consequências perturbadoras para o jornalismo: uma nova lei, lato sensu, foi aceita pela justiça britânica, um novo entendimento foi fixado, um novo marco legal para perseguir jornalistas e ameaçá-los com a possibilidade de extradição para os Estados Unidos. Bom, salvo se acometidos de desequilíbrios mentais e riscos suicidas associados a uma potente campanha internacional por liberdade.

A sentença, nesse sentido, foi muito bem pensada. Fundamentada em relatórios médicos e na história familiar do réu, além de argumentar a inquestionável precariedade do sistema prisional dos Estados Unidos, concede ao acusado o que ele desesperadamente suplicava – ao menos em uma das linhas de defesa – o direito de não ser extraditado, ficando a juíza livre para vergar-se à pressão do sistema de justiça estadunidense forjado para responsabilizar crimes transnacionais de novo tipo.

A sentença criminaliza a atividade do jornalista. Especificamente criminaliza o que Assange fez, mas potencialmente também alcança muitas das coisas que são feitas rotineiramente por profissionais britânicos e de outros países. Da forma como foi estruturada, a decisão é um carimbo legal para que jornalistas possam ser processados e julgados em casos futuros e que a extradição diante de um processo evidentemente político está permitida.

Esse é o recado da justiça britânica diante do acordo de extradição com os Estados Unidos: na próxima, vocês levam. Eis um importante alerta para os defensores de direitos humanos diante dos tratados de extradição, dos acordos de cooperação em material penal e da irrefreável tendência de violação do rule of law em proveito da segurança nacional daquele país.

Pelo lado da defesa de Assange, o que fará a defesa, recorrerá para tentar corrigir a deturpada sentença? Apelará por garantías para que Julian possa viver em segurança?

Já é conhecido o fato de que Assange frequentemente ignora recomendações dos seus inúmeros advogados em prol de princípios e convicções, mas é possível que, dado o estado de fragilidade em que se encontra, acolha recomendações para que possa sair em liberdade, ainda que condicional, para refazer-se. E este não seria apenas um conselho jurídico pelo interesse do cliente, mas uma necessidade individual e humana. É imperativo que Julian Assange possa curar-se, fortalecer-se, revigorar-se para então, ladeado por jornalistas do mundo inteiro, voltar a cumprir sua vocação como ativista em defesa dos direitos humanos.

Carol Proner, advogada, UFRJ/ABJD.

Redação

2 Comentários

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  1. A TORTURA nos USA e sua Filial UM, o RU, é coisa fantástica. E eles se dizem países “DEMOCRÁTICOS”, País da “liberdade” de imprensa. . Que pena !

  2. A Inglaterra acabou em 1956, com o desfecho da Crise do Canal de Suez.
    Já havia perdido seu status de poder colonial (ironicamente, Hitler perdeu a guerra, mas mandou o império onde o sol nunca se punha para o limbo da História), e depois que os EUA lhe impuseram uma saída humilhante naquela crise, perdeu qualquer capacidade de influência mundial.
    Passou a sobreviver das trapalhadas cômico-sexuais da Família (sic) Real, uma realidade de tablóide, e da ciranda financeira da City de Londres.
    Virou um Suição.
    Lembro-me de Margaret Thatcher, dirigindo-se ao Parlamento logo após a rendição argentina, nas Malvinas: “England is great again!”
    Tá bom.
    Poderia ter dado um passo, ainda que tímido, em direção a reconquistar um pouco do prestígio perdido, com o caso Assange.
    Mas eis que aparece essa juíza, uma Rosa Weber (ou Carmem Lúcia, não sei) da velha Albion, com essa sentença grotesca, fundamentada não nos fatos constantes dos autos, mas na possibilidade futura de que o réu venha a sofrer tortura (nos EUA?! Que é isso!! Essas coisas acontecem só no Gulag!!) ou cometer suicídio.
    Viva Assange!
    Ainda que sua liberdade seja uma concessão inominável desse poder postiço, podre, do velho Império decadente, quando deveria ser a constatação lapidar, definitiva, de que ele não cometeu crime algum.

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