Que responsabilidade fiscal queremos? A falsa comparação com o orçamento doméstico, por Ricardo Gonçalves

do Brasil Debate

Que responsabilidade fiscal queremos? A falsa comparação com o orçamento doméstico

por Ricardo Carvalho Gonçalves

A lógica do Estado não funciona como a lógica privada de uma família. As variáveis fiscais (arrecadação, gasto e dívida) são diferentes e essa comparação só leva a políticas danosas para a sociedade. Fazer dívida nem sempre é ruim

Comumente, compara-se o orçamento do Estado com um orçamento familiar para argumentar que o governo não pode gastar mais do que arrecada, pois isso provocaria endividamento público que teria consequências maléficas para a sociedade: aumento da taxa de juros, queda dos investimentos privados e aumento da inflação.

Dentro dessa lógica é que se criou a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em 2000, fazendo com que o Estado passe a gerir o seu orçamento como uma “família responsável”, sempre mantendo uma “poupança” no final do ano. Essa “poupança” é o que se chama de superávit primário: receitas menos despesas, sem contar gastos com juros da dívida (a ideia é exatamente pagar os encargos da dívida pública). A partir da LRF o governo precisa, por lei, anunciar uma meta de superávit primário anual. Caso o governo não cumpra a meta que estipulou, poderá ser contestado pelo Congresso e, talvez, responder criminalmente por “irresponsabilidade fiscal”.

Mas com uma lógica tão simples, por que seria necessária qualquer reflexão? Para a surpresa de alguns, pode-se dizer que a lógica do orçamento do Estado não funciona como a lógica privada de uma família. As variáveis fiscais (arrecadação, gasto e dívida) apresentam uma dinâmica tão diferente daquela de uma dona de casa que tal comparação não só atrapalha o seu entendimento, como leva a condução de políticas econômicas danosas para a sociedade.

Em primeiro lugar, deve-se entender que a arrecadação do Estado depende diretamente da atividade econômica. Quando alguém compra qualquer produto, uma parte se converte em arrecadação do Estado por meio dos impostos. Assim, pode-se afirmar que esta é uma variável “pró-cíclica”, ou seja, quando o ciclo econômico está em sua fase ascendente, quando a renda está crescendo e as pessoas estão gastando mais, a arrecadação do Estado também crescerá.

Obviamente, quando o crescimento econômico desacelera, as receitas do governo também irão desacelerar. O gráfico 1 ilustra esse fato: percebe-se uma tendência das receitas do governo central e do PIB de variarem no mesmo sentido.

Por isso, quando o governo anuncia uma meta de superávit primário é preciso fazer uma boa estimativa de qual será o crescimento econômico para estimar a sua arrecadação e programar os seus gastos. Caso haja uma frustração de receitas devido a uma queda inesperada do PIB, será preciso cortar despesas ou negociar com o Congresso a mudança da meta fiscal.

Em segundo lugar, é preciso considerar a importância da demanda agregada para os ciclos econômicos. Percebe-se que em momentos de recessão há uma queda da renda e do consumo das famílias, impactando negativamente os investimentos. Afinal, por que um empresário aumentaria investimentos se não há perspectiva de aumentar as suas vendas ou de elevar os seus lucros? Com isso, a queda da demanda agregada (do consumo das famílias e do investimento) pode agravar um cenário de pessimismo, dificultando a retomada do crescimento. O gráfico da Figura 2 ilustra como a formação bruta de capital fixo (um correspondente para os investimentos) também segue uma lógica pró-cíclica.

Para quebrar esse ciclo vicioso seria preciso alguma fonte externa de estímulo, que pode ser pelo comércio internacional ou por algum agente que não precise responder a incentivos de demanda interna, como o Estado. Contudo, para que essas fontes externas impactem de forma positiva o crescimento econômico é preciso que: ou os parceiros comerciais do país aumentem a demanda por nossas exportações; ou que o governo tenha a capacidade de realizar gastos que impactem positivamente o PIB, com um “efeito multiplicador” sobre o crescimento.

Conforme Orair, Gobetti e Siqueira (2016)[1], os gastos do governo com investimento e com benefícios sociais apresentam um efeito multiplicador significativo, principalmente nas fases de baixa do ciclo econômico. Isso significa que, quando a economia desacelera, esses dispêndios geram maior crescimento econômico. Esse fato é explicado pelo impacto que esses gastos públicos têm sobre a demanda agregada, que geram um encadeamento de gastos no setor privado. Por exemplo, a população de baixa renda beneficiada com políticas como Bolsa Família desembolsa a maior parte de sua renda com consumo. Assim, praticamente todo o valor que o governo transferiu para essas famílias será revertido em vendas de algum empresário (para as famílias) e de própria arrecadação do governo (por impostos sobre essas vendas).

Contudo, quando o governo possui como principal objetivo o cumprimento da meta de superávit primário, seguindo a “lógica doméstica”, ele tende a cortar gastos em momentos de desaceleração econômica, agravando a queda da demanda agregada, do PIB e das próprias receitas do Estado. Além disso, boa parte dos investimentos públicos se encontram dentro de uma conta chamada “despesas discricionárias”, que são mais facilmente restringidas no esforço de se alcançar a meta fiscal. Conforme a Figura 3, ao perseguir uma forma “responsável” de gerir o orçamento público, o regime de superávit primário atribui uma característica pró-cíclica também aos gastos do governo.

Nesse sentido, é preciso ter cuidado com o caráter moralista atribuído à política fiscal quando se utiliza termos como “responsável”. Afinal, é exatamente por seguir essa “lógica doméstica” que a política fiscal pode dificultar a retomada do crescimento econômico e, consequentemente, prejudica as próprias contas públicas. Não é por acaso que desde 2015, quando o governo realizou um dos maiores ajustes fiscais de sua história, vivemos uma de nossas maiores crises. Com isso, a arrecadação do Estado despencou e passamos a conviver com déficits fiscais elevados, apesar dos grandes cortes de gastos.

Cabe lembrar que o déficit, em si, não é um problema se o governo está agindo para a retomada do crescimento econômico, mantendo a ordem social, promovendo emprego e investimentos estratégicos. Contudo, quando o governo passa a incorrer em déficits realizando políticas contracionistas, elevando o desemprego, piorando a vida da população e se afastando da retomada de um crescimento sustentável, os problemas são evidentes. Basta olhar para qualquer indicador social (desemprego, pobreza, educação, saúde…) para perceber que a “responsabilidade” não é o forte das políticas de austeridade.

Nota

[1] ORAIR, R. O.; GOBETTI, S. W.; SIQUEIRA, F. F. (2016). Política fiscal e ciclo econômico: uma análise baseada em multiplicadores do gasto público. Prêmio Tesouro Nacional de Monografias 2016, 2o lugar.

Ricardo Carvalho Gonçalves – É doutorando em economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon)

Crédito da foto da página inicial: TRE-SC

 

12 Comentários

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  1. Embora a lógica do estado não funcione como a lógica da família

    Embora a lógica do estado não funcione como a lógica privada de uma família, os defensores dos privilégios burgueses tentam convencer os pobres mortais de que elas são iguais, como no posto abaixo transcrito, de autoria do Pedro ABBM:

    “O problema é que, se a causa da inflação não for o reajuste dos salários, então ela continuará após a reposição das perdas, fazendo necessárias mais e mais reposições, e todo o mundo sabe que nessa corrida o trabalhador sempre perde, ao passo que os rentistas podem não só anular os efeitos da inflação, como lucrar com ela.

    O único capaz de produzir inflação é o governo, porque é o único que emite moeda. A inflação sempre foi considerada um componente essencial do modelo desenvolvimentista vigente desde Vargas até os militares, passando por JK. Trata-se de um método para cobrir os rombos das contas do governo mediante o sequestro do poder aquisitivo da população, como se fosse um imposto invisível: basta emitir mais moeda que a mágica está feita. Engenhoso, sem dúvida, é um imposto que pode ser criado sem aquela chatice de comprar deputados no congresso. Ah, sim, também é um método para baixar os salários, o que é proibido por lei: basta dar um reajuste inferior à inflação, que o efeito é o mesmo. Por que motivo o governo largaria mão de um recurso assim tão útil e fabuloso? A desculpa era que a inflação produzia o desenvolvimento, que beneficiava a todos. Mas os ganhos que o trabalhador obtinha com a abundância de empregos nos tempos de crescimento rápido da economia eram prontamente anulados pelo surto inflacionário que vinha em seguida. Dessa forma, durante décadas, o Brasil teve uma combinação de altos índices de crescimento com pouca ou nenhuma inclusão social, tornando-se uma das sociedades mais desiguais do planeta. O próprio Médici reconheceu: “A economia vai bem, mas o povo vai mal…”

    NO FINAL DAS CONTAS, PRODUZIR INFLAÇÃO, TAL COMO ENDIVIDAR-SE, É APENAS JOGAR UMA CONTA PARA O FUTURO. VOCÊ PODE FAZER A EXPERIÊNCIA EM SUA CASA MESMO: GASTE MAIS DO QUE GANHA OU OU TOME UM EMPRÉSTIMO, VERÁ QUE O EFEITO É O MESMO. Uma hora a conta chega, e no caso do Brasil, chegou nos anos 80, a década perdida, quanto tivemos uma combinação de alta inflação com alto desemprego, mandando para as cucuias a falácia de que “inflação produz desenvolvimento”. Quem ainda credita nisso deseja retornar a um passado que já deveria estar enterrado”.

     

    Atualmente temos inflação relativamente baixa com uma alta taxa de desemprego, mandando para as cucuias a falácia de que a falta/controle da inflação, por si só, seja benéfico para a classe trabalhadora.

    1. Não há uma relação causal simples

      Não há uma relação causal simples entre inflação e nível de emprego, uma vez que a economia tem outras variáveis intervenientes. No momento temos uma combinação de desemprego alto e inflação baixa. Mas nossa vizinha Venezuela está com uma combinação de inflação altíssima com desemprego altíssimo, despejando migrantes por todos os lados. Em passado recente, antes do Plano Real, convivemos com uma combinação de inflação alta e economia estagnada por anos a fio.

      O que decididamente não nunca existiu em parte nenhuma do mundo é uma combinação permanente de inflação alta com desenvolvimento. É um contrassenso. A emissão de moeda pode provocar um aquecimento na economia, mas a médio prazo vem a perda do poder aquisitivo da população, seguido da queda do consumo, seguido da quebra das empresas, e vai todo o mundo para a rua. Dinheiro não dá em árvore.

  2. Quando qualquer politico ou

    Quando qualquer politico ou economista fala essa barbaridade ” a economia de um Pais é como o de uma casa ou de uma empresa” estamos diante de MÁ FÉ, porque o sujeito sabe que não é assim ou de IGNORANCIA, porque ele pensa que é assim.  Muitos politicos e “comentaristas economicos”  repetem essa bobagem, um dos recentes que ouvi foi Henrique

    Meirelles, pretensos “comentaristas” dizem isso a toda hora para justificar o ajuste fiscal, nunca ouviram falar que recessão se combate com o oposto do ajuste, com expansionismo fiscal, algo que já se sabia em 1933 quando Keynes deu o roteiro à

    Roosevelt em uma carta de 30 de maio de 1933, “gaste o maximo que puder, mande homens tirarem pedra de um lado para outro das estradas, voce precisa gerar renda para criar demanda”. Roosevelt em um ano empregou 6 milhões de pessoas ´para

    limpar parques, estradas e pintar predios publicos, criando renda para fazer a economia  andar.

  3. A diferença básica é…

    A diferença básica entre o orçamento doméstico e orçamento da nação é que no primeiro, a renda mensal é fixa (o salário) e no segundo, é variável (a arrecadação depende do estado da economia, que depende de vários fatores). Assim, sabendo que a entrada será de certo valor, faz sentido estabelecer um teto para os gastos, bem como permitir maior flexibilidade quando a entrada não é fixa e depende de investimentos feitos pelo próprio gestor (o governo).

    Mas o resto é bem análogo. Acreditar que para aumentar a arrecadação, basta injetar mais dinheiro para fomentar a atividade econômica, é acreditar que o retorno de tais investimentos será tão rápido e vultoso que permitirá cobrir o rombo e repetir a operação, em um ciclo sem fim. A mesma lógica do devedor costumaz, que acredita que o retorno do que investiu com o dinheiro emprestado será tão rápido que permitirá pagar os juros e fazer novo empréstimo, em um ciclo sem fim. É claro que no mundo real as coisas não são assim, pois se fossem, a economia seria algo mágico e maravilhoso, e o progresso estaria ao alcance de uma simples canetada.

    A diferença mais notável entre os novos países emergentes da Ásia, aqueles que foram bem sucedidos enquanto nosso desenvolvimentismo soçobrava, é justamente o alto índice de poupança interna. Não conheço nenhum caso de país que se tornou rico graças a endividamento.

  4. Inflação não é, necessariamente, sinônimo de emissão de moeda

    Pedro, você acha que a deflação do Japão é consequencia do recolhimento de moeda?

    O seu problema é que você acha que a única causa da inflação é a emissão de moeda.

    1. Por definição…

      Por definição, a inflação é causada pela emissão da moeda. Os efeitos da inflação na economia é que são variáveis conforme o cenário (há deflaçáo no Japão porque o pessoal está entesourando ao invés de consumir). A partir desses cenários variáveis é que os espertalhões criam falsas dicotomias, como essa de que para haver emprego tem que haver inflação, e combater a inflação necessariamente causa desemprego. Quem é tolo acredita.

      1. Imagine uma cidade fechada em si mesma

        Imagine uma cidade fechada em si mesma, com uma quantidade determinada de moeda e com uma população estável, a qual é atendida por 10 médicos. Suponha que, em decorrência de um acidente, 5 médicos morram. Ceteris paribus, pela lei da oferta e da procura, os preços dos serviços médicos vão se manter inalterados ou vão subir?

        1. Vão subir, mas…

          Os preços dos médicos vão subir. Mas se a quantidade de moeda circulante permanecer inalterada, haverá menos dinheiro para se gastar em outros ítens, e os comerciantes terão que baixar os preços, ou os produtos vão ficar na prateleira. A baixa dos preços compensará a alta dos serviços médicos. Assim funciona a economia.

          A impressão que eu tenho é que você tem uma vontade enorme de que haja inflação. Isso é um contrassenso, pois o trabalhador sempre perde com a alta dos preços. Só quem é a favor da inflação é quem está montado no governo e acha interessante que o governo cubras seus rombos à custa da perda do poder aquisitivo da população.

           

          1. Os ricos obtêm lucro vendendo seus produtos pelo preço de custo

            Em razão da mais-valia extraída dos trabalhadores, os capitalistas obtêm lucro vendendo seus produtos e serviços pelo preço de custo. Em sendo assim, os capitalistas que baixarem os preços dos seus produtos e serviços por conta da alta dos preços dos serviços médicos vão quebrar. Isto quer dizer que ainda que a quantidade de moeda continue inalterada a qualidade de vida dos trabalhadores será reduzida. A redução da qualidade de vida dos assalariados é sinônimo de inflação. Vê-se, portanto, que a impressão de moeda não é a única causa da inflação.

            Você está com uma impressão errada a meu respeito. Eu não sou adepto da inflação. Eu sou adepto da melhoria de vida dos trabalhadores. Entretanto, entre a estabailidade monetária decorrente não da elevação da oferta mas da redução dos salários e a inflação com reposição das perdas salariais, eu sou a favor desta última.

          2. O depoimento do Gil só seria

            O depoimento do Gil só seria desqualificado por uma prova irrefutável dos crimes atribuídos ao Lula ou por uma eventual confissão. O Gil não disse nem que o Lula, nem que o Dirceu, nem que o Palloci nem que o João Santana não praticaram crimes, ele apenas disse que não tem conhecimento que eles praticaram crimes. Se alguém diz que não tem conhecimento de que existe um monstro no Lago Ness ou que não tem conhecimento de que o Zucolotto tira proveito da indústria das delações, essas afirmações não equivalem a dizer que o Monstro de Loch Ness não exista nem que o Zucolotto não tire casquinhas financeiras das delações premiadas.

            Moro Burraldo.

          3. Tirando a prova dos noves na prática

            Pedro pergunte aos empregados que tiveram seu poder aquisitivo reduzido após o golpe, se eles prefeririam a Dilma Rousseff com uma inflação mais elevada ou se eles preferem o Temer com uma inflação mais reduzida.

            Pergunte às pessoas que perderam o emprego após o golpe de 2016 se eles prerferem o Temer com uma inflação baixa ou se eles prefeririam a Dilma com uma inflação mais elevada.

          4. Com maior renda, os médicos sobreviventes gastarão mais

            Com maior renda, os médicos sobreviventes gastarão mais do que gastavam e possivelmente entesourarão também. Em sendo assim, a demanda não vai se alterar e os comerciantes não baixarão seus preços. E mesmo que eles baixem seus preços, a produção baixará, já que um dos indutores do investimento é a eficiência marginal do capital, isto é, a taxa de retorno. Caso os capitalistas baixem os preços dos seus produtos e serviços para compensar a redução da procura, eles baixarão os investimentos, e, em consequência, teremos menos emprego, menos produção e menos circulação de mercadorias.

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