Realidade realiza a ficção e Black Mirror não terá sexta temporada: é o fim da série?, por Wilson Ferreira

Brooker tem sugerido que o não lançamento da sexta temporada da série se deve a um esgotamento criativo de “Black Mirror”

Realidade realiza a ficção e Black Mirror não terá sexta temporada: é o fim da série?

por Wilson Ferreira

“Tudo soa como algo que já assistimos, e penso: eu já imaginei isso!… realmente, tudo parece com coisas que já escrevi”, afirmou o criador da série “Black Mirror”, Charlie Brooker, diante dos atuais desdobramentos da pandemia COVID-19. Em entrevistas, Brooker tem sugerido que o não lançamento da sexta temporada da série se deve a um esgotamento criativo de “Black Mirror”: os mundos futuros descritos pelo roteirista já foram não só há muito realizados, como a realidade parece ultrapassar a imaginação ficcional – desde a minissérie “Dead Set” (2008), escrita por Brooker, na qual integrantes confinados de um reality show estão alheios a uma epidemia zumbi que se espalha no Reino Unido. O futuro, matéria-prima do gênero ficção científica, parece que não mais existe: ele já foi ironicamente realizado. 

A quinta temporada da série Black Mirror foi lançada em junho do ano passado, e foi tão cativante e bem-sucedida quanto as quatro primeiras. Os fãs aguardavam ansiosamente para esse ano a sexta temporada. Principalmente nesses tempos de quarentena, onde as plataformas de streaming como a Netflix se tornaram uma das principais formas de entretenimento e informação.

Porém, em entrevista o criador Charlie Brooker admitiu que, pelo menos nesse ano, não teremos episódios novos. Charlie não tem certeza se o público aguentaria uma nova temporada com histórias distópicas num momento em que a realidade parece realizar os futuros fictícios narrados pelas cinco temporadas de Black Mirror.

Em entrevista ao Radio Times, o roteirista admitiu que a sexta temporada não vai ser lançada tão cedo: “No momento, eu não sei se tenho estômago para lidar com histórias sobre sociedades desmoronando, então não estou trabalhando com nenhuma delas”, disse ele à publicação, em meio a relatos da mídia de que a sexta temporada foi “interrompida pelo vírus” – clique aqui.

“Estou ocupado fazendo outras coisas. Não sei se posso dizer o que estou fazendo e o que não estou fazendo… Estou ansioso em revisitar minhas habilidades em HQs, por isso nesse momento estou escrevendo roteiros que me façam rir”, admitiu Charlie Brooker.

Charlie admite também que nesse momento de crise da pandemia, muitos fãs estão se sentindo como se estivessem vivendo num dos mundos imaginados por Black Mirror – programas de TV nos ensinando formas de evitar a contaminação, policiais patrulhando as ruas e conduzindo as pessoas para dentro de suas casas, a proibição das pessoas tocarem umas as outras.

“Tudo soa como algo que já assistimos, e penso: eu já imaginei isso!… realmente, tudo parece com coisas que já escrevi”, afirmou Charlie.

Hipo-utopia e Dead Set

Charlie Brooker é o principal exemplo que corrobora com uma tese desse Cinegnose: a paradoxal característica da ficção científica pós-moderna – a ausência de futuro.

Se a principal característica do gênero era a especulação sobre mundos futuros utópicos ou distópicos, o sci-fi pós-moderno, ao contrário, cria uma utopia que poderíamos chamar de “hipo”.

Na Hipo-utopia o futuro tal qual previsto nas utopias científicas e tecnológicas modernistas não se realizou, nem nos seus aspectos positivos (utópicos) ou negativos (distópicos).

“Hipo” no sentido de “insuficiência”, “posição inferior” + “topia” do grego “topus”, “lugar”. Paradoxalmente, o atual gênero ficção-científica se ressente de uma, por assim dizer, ausência de futuro: refletem mais as mazelas do presente e as projetam de forma hiperbólica em futuros distantes ou próximos. Na verdade, o futuro não existe, ele é apenas uma projeção hiperbólica do presente – clique aqui sobre artigo científico desse humilde blogueiro.

Definitivamente Charlie Brooker é uma personalidade sintonizada com o espírito do nosso tempo. E isso não começou apenas com a série Black Mirror. Em 2008, ele escreveu a minissérie Dead Set (analisada por este Cinegnose – clique aqui) na qual uma epidemia zumbi toma conta de todo o Reino Unido. Exceto para os sete integrantes que estão confinados na casa do reality show “Big Brother”.

Enquanto os zumbis pouco a pouco começam a ocupar o interior dos diversos estúdios da emissora, os competidores do reality continuam alheios a tudo, imersos que estão nas suas picuinhas cotidianas. Até que o caos finalmente entra no cenário.

Tanto aqui no Brasil como em Colônia, Alemanha, repetiu-se a situação, tal qual imaginada por Charlie Brooker, na edição do “Big Brother” desse ano: não só o programa continuou com os competidores alheios à pandemia do novo coronavírus que rolava atrás da casa cenográfica, como repetiu-se a mesma situação paradoxal dos espectadores – tanto em Dead Set quanto na atual pandemia no mundo real, telespectadores passavam o tempo confinados em suas casas se entretendo vendo outras pessoas confinadas em uma casa televisiva.

Minissérie “Dead Set” (2008)

Os fãs de Brooker observaram no Twitter que a premissa de Dead Set estava se realizando e de que todos nós estaríamos vivendo “no mundo de Charlie Brooker”. Ele admitiu: “OK! Isso acontece tão frequentemente que estou começando a aceitar que sou algum tipo de adivinho, místico ou qualquer outra coisa que você queira chamar”.

Nem adivinho, nem místico. Charlie compreendeu, talvez mais do que qualquer um, esse paradoxo da ficção científica atual: a articulação da tecnologia e sua última interface, a bio-eletrônica (que se manifesta na reengenharia social da biopolítica, como acompanhamos na atual pandemia COVID-19), está suplantando qualquer narrativa ficcional.

Uma série como Black Mirror tenta competir com a realidade através do paroxismo, da hipérbole, projetando num futuro próximo as mazelas do presente. Um trabalho hercúleo que parece estar cansando Charlie Brooker. É o que está por trás das crípticas afirmações de Brooker na entrevista citada acima.

Black Mirror não é um sci-fi

A questão é que Black Mirror não prevê o futuro: a série apenas carrega nos tons de uma realidade que já é presente – hipo-utopia. Sua aparência ou embalagem em termos de cânones do gênero (cenários tecnológicos distópicos) nos leva a acreditarmos que estamos assistindo a um sci-fi. Black Mirror é um thriller documental sobre o nosso tempo. Vemos a série como sci-fi para racionalizarmos nosso mal-estar.

Senão vejamos.

Em 2015, uma biografia não-oficial sobre então Primeiro Ministro britânico David Cameron continha uma série de alegações de que certa vez ele teria participado de um bizarro ritual de iniciação de uma sociedade secreta de Oxford na qual “colocou uma parte privada da sua anatomia na boca de um porco morto”. Citando como fonte um parlamentar que afirma ter evidências fotográficas.

Rapidamente, fãs da série compararam a notícia ao primeiro episódio de Black Mirror, “National Anthem”, no qual vimos o primeiro ministro da ficção, Michael Callow, sendo forçado a fazer sexo com um porco vivo na TV para salvar a princesa Susannah de um sequestro.

“Só para esclarecer… eu nunca ouvi nada sobre Cameron e um porco para escrever esse episódio. Isso tudo me causa estranheza”, declarou na oportunidade Charlie Brooker.

E ainda poderíamos enumerar outros exemplos de como Black Mirror emula o nosso presente.

“Quinze milhões de Méritos” e “Volto Já”

O segundo episódio da série imagina um futuro distante, no qual as pessoas devem pedalar em bicicletas estacionárias para ganhar dinheiro (“méritos”) por comida e entretenimento.

O episódio repensa toda a natureza da sociedade atual, com base na tendência dos jogos para celular “freemium”, cujo mote é criar loops de desejo que mantêm as pessoas sempre voltando em busca de mais. O episódio leva o fenômeno do mundo real ao extremo.

Em seus pressupostos, a sociedade figurada na série não é muito diferente da que vivemos: os telefones foram transformados em smartphones e os transformou no próprio ambiente em que vivemos e respiramos.

Em “Volto Já” acompanhamos o namorado de uma mulher que morre num acidente de trânsito. Ela conhece uma nova tecnologia capaz de simular a voz e a sua personalidade no celular, com base em seu perfil nas redes sociais e outros materiais audiovisuais. Este serviço a ajuda a superar seu desespero, até que um dia ela acidentalmente deixa seu celular cair no chão e entra em pânico. A voz artificial lhe conta sobre o estágio experimental do serviço, no qual ela concorda em fazer com que a réplica seja transferida para um corpo sintético, quase idêntico ao falecido.

Continue lendo no Cinegnose.

Redação

2 Comentários

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  1. Dead set não é novidade é chupado, aliás como todo o terror moderno, de Edgar Allan Poe, a máscara da peste vermelha, mostra um magote de pessoas encasteladas, com festas todos dia, enquanto a peste grassa fora dos contrafortes do castelo…até que chega um convidado que vai destruindo cada um com a peste…nada é novo no futuro das séries, apenas uma releitura dos antigos clássicos, uns bem feitos, como black mirror, outros, mal feitos, como as séries de vampiros, lobisomens e etc….Black Mirror na ultima temporada mostrou algo bem interessante, enquanto um cara tenta se matar num carro, um desses gurus do vale do silício, recado dado direto para, steve jobs in memoriam, mostrando que a realidade é bem mais cruel do que os mundos digitais, a série vai fazer falta, acho que falta mesmo é criação, acho que ela envelheceu….

  2. Caro wilson. Em 2017 vc escreveu uma materia sobre joao moreira salles, e colocou um link sobre a serie america. Seria possivel indicar um novo link, pois essa seria na tv manchete me faz lembrar minha infancia , agradeco.

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