Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
[email protected]

“Retratos da violência contra a mulher”: a reportagem que ainda pode ser contada, por Maíra Vasconcelos

O medo de ser morta foi uma fala repetida por quase todas as 32 mulheres que abordei na delegacia, e que aceitaram dar seu testemunho para a reportagem.

“Retratos da violência contra a mulher”: a reportagem que ainda pode ser contada

por Maira Vasconcelos

Passados dois anos de publicação da reportagem “Retratos da violência contra a mulher”, persistem os fatos relativos à violência de gênero. Por isso, volto à reportagem, pela repetição cotidiana de tudo o que verifiquei, em 2017. Basta abrir qualquer jornal de hoje ou ontem e buscar por crimes de feminicídio ou violência doméstica.  

O medo de ser morta foi uma fala repetida por quase todas as 32 mulheres que abordei na delegacia, e que aceitaram dar seu testemunho para a reportagem. Elas diziam que denunciar também dava medo, mas que talvez fosse melhor. Algumas diziam querer deixar de apanhar e não sabiam como. Algumas viam como resultado positivo o marido ou namorado serem presos, pois assim vislumbravam um fim para as torturas. Outras, quando o marido ou ex-namorado já tinham sido presos, reclamavam da Lei Maria da Penha.  

Uma amostra de 32 mulheres entrevistadas na delegacia, durante um mês e meio, é um número considerável, mas não permite maiores afirmações. Lembro-me da filha, que acompanhava a mãe idosa, para que ela denunciasse o marido por maus-tratos e violência. O alcoolismo ou o consumo de álcool, e com isso o aumento das agressões, na maioria dos casos, também acompanhado de ameaças de morte. Escutaria isso repetidas vezes entre as mulheres na delegacia. 

Também foi situação recorrente a mulher que denuncia o ex-namorado por perseguição, sempre seguida de ameaça de morte, após o fim do relacionamento.  

Estou aqui para pedir uma medida protetiva contra o meu ex-marido. Há dois anos, ele tentou matar a mim e a minha filha, que inclusive é filha dele. 

Não me esqueço da mulher que foi colocada no carro com os amigos, levada a um lugar onde cortaram seu cabelo, além de ter sofrido a usual ameaça de morte. Esses casos de tentar queimar alguma parte do corpo da mulher, usar faca para ameaçar, cortar o cabelo, trancar a mulher em casa com os filhos, ao que parece, são muito comuns e poderiam até mesmo caracterizar o tipo de violência e crime que se comete contra uma mulher pelo fato de ser mulher. 

A senhora que sofria assédio moral, disse da dificuldade de se provar esse tipo de crime, sendo a terceira ou quarta vez que se dirigia à delegacia. Nesse caso, ela dizia desacreditar completamente da lei, mas insistia em voltar à delegacia porque era o único meio que estava ao seu alcance.

Tem quatro anos e oito meses que eu terminei o relacionamento e até hoje meu ex fica atrás de mim e fica me ameaçando de morte. Aí eu fico com medo, né? 

Lembro-me, perfeitamente, do relato da senhora que chegou a tirar a faca para o marido, cansada das agressões diárias, como no dia em que ele atirou nela uma panela com água fervendo. Uma comerciante, da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), festejava a prisão do ex-namorado porque seu medo também era o de ser morta.

Ele bebe, sabe? E ficava violento.

Estou separando judicialmente vai fazer três meses, e ele me ameaça porque não aceita a separação. Aí toda conversa que a gente tem, ele fala que vai me matar, vai matar quem estiver perto de mim, vai me perseguir.

A mentalidade fossilizada que diz, “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, faz com que vizinhos escutem mulheres sendo agredidas e não levantem o telefone para denunciar. Isso foi contado por alguma das autoridades que entrevistei na delegacia, em Belo Horizonte, ao final da reportagem – escrivão, delegada e investigador. 

Eles detalharam momentos do mês e época do ano em que as denúncias de violência aumentam ou diminuem. Por exemplo, dia de jogo de futebol, datas festivas e início de mês, quando é pago o salário.  

Assim, os casos brotavam, toda semana, naquelas cadeiras precárias da delegacia sempre, sempre cheia. A delegacia especializada da Mulher é um poço de casos cotidianos em que muitos deles se parecem e se repetem. Os agressores possuem falas de agressão e intimidação, gestos e modos coincidentes em como violentam as mulheres. 

Em um momento da reportagem, percebi que, ou me enveredava em um estudo mais aprofundado e até estatístico, ou já era suficiente os casos até ali coletados. Dada a repetição que se concretizava a cada testemunho. No final, mudei o tempo de entrevistas na delegacia para um mês e meio, tendo sido finalizado entre janeiro e março de 2017.

Jornalismo e Estado

O cotidiano de violência contra a mulher é um trabalho jornalístico ainda por ser escrito e investigado, mais uma vez, ou quantas vezes seja necessário sair a campo para retratar esses casos. Afinal, o que o jornalismo tem feito sobre o assunto? Digo, o jornalismo de rua, de reportagem, de sondagem e análise das narrativas, além da obrigatória cobrança das autoridades públicas. O Estado tem responsabilidade sobre os casos de feminicídio e violência contra a mulher. E, afinal, todos os casos são mesmo casos de polícia

Por isso, essa reportagem ainda não termina com esse texto. Não há possibilidade de terminar esse trabalho jornalístico que comecei em janeiro de 2017. Seria um equívoco achar que escutar e transcrever, um a um, dos 32 relatos de violência contra a mulher, que esse trabalho não reverberaria ou traria novos desdobramentos e pensamentos a respeito. Justamente neste 2019, durante um governo autoritário, que em 2017 já o era, mas agora é declaradamente sexista e anti-direitos humanos.

O jornalismo não tem qualquer razão para abandonar uma reportagem no tempo passado, quando o presente cotidiano insiste em repetir tais fatos. O jornalismo tem o compromisso e a responsabilidade social de desmembrar falas, casos, casas destroçadas, violações dos direitos humanos e sociais, neste caso, contra a mulher.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador