Ruas de cana e ruas de gente, por Lúcio Verçoza

Ruas de cana e ruas de gente[1]

Por Lúcio Verçoza

Cidades cercadas, arrodeadas por cana. Ruas de cana e ruas de gente parecem juntas. No fim da rua de gente, um canavial; no fim da rua de cana, casas e paralelepípedos – asfalto apenas nas ruas centrais. Cidades pequenas, cidades sem graça. Nos dias de festa tem muita cachaça. Cachaça da cana. Cachaça que engana, ou que revela a desgraça. Cidades sem grande atrativo. Rotas de passagens… Rotas de fuga. Local de morada, morada na rua, nas pontas de rua, depois da perda de condição de morador nas fazendas. Fazenda de cana. Cana plantada em ruas. Ruas feitas para cana.

Depois da chegada, depois das primeiras entrevistas… ainda sou estranho. Não estou integrado a essas cidades – quem está? Uma é plana, é terra plana de tabuleiro. Tem quadras quadradas e monótonas como as casas dos tabuleiros; tem peões, reis e rainhas como nos tabuleiros, tem peças sacrificadas como nos tabuleiros de xadrez. Outra fica no alto da serra. Embaixo da serra muita cana, subindo a serra muita cana, no alto também. Usina na entrada da estrada que leva à cidade. Cidade de clima agradável à noite. Cidade de temperatura infernal durante o dia. Cidade sem sombra, cidade sem árvores. Na noite se avista o fogo dos canaviais subindo a serra… é fogo de cana queimando. Amanhã tem serviço logo cedo!

Trabalho no calor de queimar os miolos. Miolos que fervem – é preciso força e concentração para golpear com o facão! Água, muita água. Cana, muito cana. Suor, muito suor. Água, muita água. Câimbra, muita câimbra. Salário, pouco salário.

No tabuleiro entrou mais uma peça: olha lá a máquina! Corta que corta. Corta cana, corta gente que perde o emprego. Mais outra que já vem vindo. – Será mesmo que ainda vai ter emprego? – Olha outra que já vem chegando! – Será mesmo que vamos fazer greve? – Greve? Que grave! – Grave? É greve!

Segue o treminhão, ou “tremiado”, em direção à usina. Abandona a estrada de terra e come o asfalto da BR-101 com uma carga de, aproximadamente, 100 toneladas de cana. Os três reboques, prestes a transbordar em cada curva, vão estalando por onde passam, para que os transeuntes mais desatentos notem aquele disparate. Toda aquela cana se transformará em açúcar, vai abastecer o mercado internacional por meio dos navios que saem do porto de Maceió. A cana produzida vai embora em forma de açúcar, enquanto o trabalhador que a produziu continua nas cidades na forma de bagaço.

Nas margens da estrada, os canaviais: paisagem corriqueira. Quanta coisa eles escondem? Por trás do familiar, quanto mistério! Quem os plantou? Por que os plantou? O que tinha ali antes da cana? – Pergunta de menino! – É, é preciso fazer perguntas de criança para enxergar além das palhas… é preciso fazer perguntas de criança para a paisagem ir mudando…

 

[1] Prelúdio do livro “Os homens-cangurus dos canaviais alagoanos: um estudo sobre trabalho e saúde” (Edufal-Fapesp, 2018).

Redação

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