Sobre alienação e naturalização
por Fernando Horta
Quando ocorre a Revolução Francesa, no exato dia da Queda da Bastilha, o rei deposto (Luís XVI) escrevia em seu diário pessoal que “nada acontecia de importante”. Luís XVI dava conta de suas caçadas e do tédio que elas tinham significado. Em 1905, durante o chamado “ensaio geral” para a Revolução Russa, o czar, diante de uma manifestação popular na frente do seu Palácio de Inverno, ordenou à sua guarda pessoal (os cossacos) que abrissem fogo contra aquele “grupo de arruaceiros”. Em realidade tratava-se do seu povo faminto que pedia humildemente ao “pai-imperador” ajuda para poder comer. A matança ficou conhecida como o Domingo Sangrento e ofereceu combustível para todo o processo de 1917. Existem exemplos mais recentes de devaneios e alienações. Hitler, por exemplo, com seu exército em frangalhos e perdendo a guerra, ordenou que cada soldado alemão resistisse “casa a casa”, acabando por ser completamente vencido.
O exemplo mais recente desta alienação está no governo Dilma e seu trato com a Lava a Jato. Dilma teria dito aos políticos do PT que com ela fizeram reuniões implorando atitudes contra a Lava a Jato que “quem não deve, não teme”. O republicanismo infantil de quem achou que “as instituições estavam funcionando” não começa com Carmem Lúcia (autora da famosa frase), mas com a presidenta Dilma. O que une todos estes exemplos históricos é a falta de compreensão da realidade, da política e das instituições. O credo de que toda a ação política “tem limites” e o processo de naturalização da violência institucional. O entorno de Lula também padeceu deste mal. Todos lhe disseram que “seria impossível” com a falta de provas da Lava a Jato, que ele (Lula) fosse proibido de concorrer em 2018. O erro de avaliação, a falta de conhecimento do que é a luta de classes efetivamente respingaram em Fernando Haddad, quem foi lançado numa cruzada eleitoral de supetão e sem qualquer preparação ou planejamento prévio.
Se há uma coisa que os militares brasileiros sabem e fazem muito bem e compreender que em última instância é o controle das armas que manda na política. Eles não acreditam em STF, em Parlamento, em Justiça ou qualquer coisa assim, mas na sua capacidade de mobilizar fuzis FAL carregados e veículos de combate em todas as capitais do Brasil. Eles simplesmente ignoram as instituições por completo, deixando o teatro institucional para os civis se iludirem.
O PT faz exatamente o contrário. Toma atitudes alienadas e naturaliza a violência do momento que estamos vivendo. Uma coisa é falar em voz alta – duzentas mil vezes – que já são 200 mil mortos pela pandemia de COVID no Brasil. Outra, bem diferente, é ter ou sentir os mortos em sua família. É a diferença entre o conhecimento e a informação. Todos têm a informação do número de mortos, nem todos conhecem a dor da perda.
Leio em todos os lugares que o PT de São Paulo compôs com o centro em troca de espaço na mesa diretora. Em Brasília parece mais próximo, inclusive com demandas estapafúrdias, o apoio do partido a Baleia Rossi, do MDB. É o mesmo caso de alienação e naturalização. O partido está completamente alienado sobre a realidade política que vivemos e naturaliza a violência institucional que sofreu e ainda sofre. E tudo isso em troca exatamente do quê? Da remota possibilidade de manipular a agenda?
Convido o leitor e a leitora a responderem o que há de comum entre o Brasil do segundo semestre de 2013 e o Brasil de hoje? Dois governos já se passaram de lá até aqui. A economia é diferente, vivemos mais pobres, crise sanitária, crise política agudizada e etc. Mas o que há de comum? Em primeiro lugar, as casas legislativas continuam na mão do MDB ou seus congêneres de centro. Depois, continuam as maquinações institucionais contra Lula, Dilma, Haddad e o partido como um todo. Não há sombra de modificação de postura do TRF4 e os que acreditam na reversão no STF das sentenças criminosas de Sérgio Moro cairão do cavalo. Ainda há em comum o renovado interesse internacional (norte-americano) no pré-sal. Não se enganem, com Trump havia o interesse de lucro financeiro com o mínimo trabalho e risco norte-americano. Isto significava “deixar os índios explorarem” e coordenar o preço e o lucro. Com Biden, renova-se o efetivo interesse em “tomar conta” do petróleo na América.
A Globo também continua a mesma. Disposta a fazer qualquer coisa para não permitir o PT ou Lula na presidência. Mesmo que o “qualquer coisa” seja esconder a monstruosidade de um fascista obtuso durante e eleição para depois lhe fazer um simulacro de oposição. De fato, o partido tem que entender, que todos os pontos e forças estratégicas que provocaram a crise de 2013-2016 continuam não só presentes como tremendamente ativos. Ainda, para piorar, o sentimento antipolítica parlamentar segue criminalizando tudo o que não seja autoritarismo pseudo-nacionalista. O Congresso brasileiro, nas figuras de Maia e Alcolumbre não inciaram qualquer campanha para recuperar a imagem do legislativo frente ao povo brasileiro. Ao contrário, calaram-se e usaram as instituições para apoiar Bolsonaro e “contê-lo”. O parlamento “fralda descartável” agiu nos últimos dois anos como as modernas calças plásticas para bebê. Ficaram segurando as cagadas do fascista e limpando a casa num processo de “controle de danos” que – assim como as fraldas descartáveis permitem toda liberdade ao bebê – deixa Bolsonaro livre para atentar contra as instituições e simplesmente não governar.
O PT se aliena da realidade acreditando em seu papel de floc-gel, aquele que absorve a urina e não deixa criar brotoejas na bunda do nenê. Que os leitores e leitoras me desculpem, eu acho isto muito pouco para o maior partido de esquerda das Américas e um dos maiores do mundo. Na cabeça dos brasileiros, foi criada uma narrativa de que “toda a política é igual” e que sempre os políticos hipotecam os “interesses do povo” em troca de benefícios pessoais. O ódio que moveu o Brasil em 2013 não foi dissipado, e fica muito difícil desfazer este julgamento popular quando Bolsonaro têm à sua disposição manchetes de jornal, fotos e vídeos das principais lideranças do PT “negociando” apoios ao centro em troca de “cadeiras na mesa diretora”.
Esta naturalização e alienação do partido entregam a Bolsonaro a sua reeleição. Em 2022, a culpa pelas (até lá) 350 mil mortes por COVID será “da antipatriótica oposição” comandada por “Maia, Gleisi e os de sempre” contra o pobre presidente Bolsonaro que “fez o que pode” para “salvar o Brasil”. E tudo isso pelo sonho de estar na mesa diretora, convocar ministros do governo e “abri um processo de impeachment”.
Eu votei no PT dos anos 80 e 90. Aquele que corria o risco de errar na oposição (como na oposição visceral ao Plano Real), mas jamais incorreria no “acerto” da composição com os algozes institucionais de Dilma, de Lula e de todo o povo brasileiro. Como se fala da “mulher de César”, ela precisa não apenas “ser honesta”, mas também “parecer honesta”. É hora do maior partido de oposição no Brasil assumir o seu papel e ser oposição “a tudo o que está aí” e não um zelador da crise a limpar qualquer excesso fétido da política fascista ou neoliberal mentindo para si mesmo que atua “em benefício do povo”.
(Peço desculpas aos meus leitores pelo tempo de silêncio. Sou humano e como todos estou impactado e deprimido com o Brasil. Meu silêncio é puramente desiludido. Mas até na desilusão eu não posso me calar frente ao imenso erro que a oposição vem diligentemente cometendo.)
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Boa noite
Acabo de ler o artigo do Fernando e o parabenizo pela análise. Vai ao encontro do que o Fornazieri vem escrevendo às segundas-feiras aqui no GGN.
Como tantos outros, militei no PT a partir das eleições de 1982. É desolador verificar a situação atual do partido. Pois é certo que o PT caminha para uma autodestruição, realizada por sua própria liderança. Não apenas a Gleisi, totalmente despreparada para comandar o partido. O quadro mostrado pelo Fernando vem se cristalizando há muito tempo. E, para ser franco, grande parte da responsabilidade por essa situação é de sua maior liderança, pois a escolha de Dilma para candidata à presidência foi uma catástrofe.
Um exemplo. Aqui em São Paulo somos vítimas (e cúmplices) do flagelo do PSDB há quase trinta anos. Para meu espanto li que novamente o PT se compôs com o partido de dória para eleger o presidente da Assembléia. E isso ocorre ha 14 anos!!!! Senadores inexpressivos que recomendaram à militância não sair de casa na última manifestação contra o fascista; paralisia, inoperância … essa é a realidade. Parece, de longe, que a liderança petista e seus deputados e deputadas estão apenas preocupados com a continuidade de seus mandatos; para preservarem suas comodidades e seus ganhos. Pouco importa a destruição do país! Peço desculpas pela extensão do comentário mas compartilho a indignação do Fernando. Um abraço a todas e todos.