Sobre as manifestações, por Vilma Aguiar

Monstros não existem. Esses, pelo contrário, tem nome, sobrenome, conta no Twitter, crachá, voto, cargo público.

Sobre as manifestações

por Vilma Aguiar

Concordo que decência é uma palavra fora de moda, mas faz falta. Mais que a palavra, a coisa.

No Brasil, sua falta tem sido endêmica mas, talvez por contágio, anda pandêmica. No Planalto Central e na entourage da Corte, uma calamidade.

Diante dela, o que me ocorre é aquela menina,  Greta Thunberg, gritando na ONU, “how dare you?”. Queria ter a sua potência para dizer, como ousam?

Como ousam deixar morrer aos milhares e cruzar os braços com alegria mórbida mal disfarçada? Como ousam promover a morte, trabalhar por ela, militar por ela?  Festejá-la. A morte devia ser o limite último perto do qual mesmo os homens mais indecentes recuam. Até Maluf, um espécime consagrado da indecência, já disse estupra mas não mata. Parecia ser já o impensável, mas não. Nunca é. Os novos facínoras dizem estupra, tortura, mata, esquarteja e joga aos cães. Tudo isso na praça, que o público que faz fila para ver o espetáculo terá orgasmos coletivos, lubrificados  por sua própria baba. Depois pedirá autógrafo e selfie.

Quando a morte não é mais o limite fatal, a área radioativa, é porque até a natureza foi subvertida. Todos os seres vivos temem e respeitam a morte. Mesmo as plantas se defendem de predadores.  Esses que ousam desdenhar da morte não cabem no reino da natureza, nem tampouco estão dentro da civilização, que esta se fez, como nos ensina a filosofia, pelo medo da morte. Os que ousam transpor o limite do pudor diante da morte são moradores de um limbo, são monstros. Só que não.

Monstros não existem. Esses, pelo contrário, tem nome, sobrenome, conta no Twitter, crachá, voto, cargo público. Como então ousam não temer os corpos insepultos nos hospitais, os corpos empilhados nos cemitérios?  Como ousam desdenhar, embriagados por própria estupidez, da dor dos que perderam para a morte seus pais, seus filhos, seus amores? Como ousam silenciar quanto uns tantos encontram com seus corpos balas perdidas ou são arremessados do novo andar pelo descuido diante de uma vida que  vale nada?

Ousam porque somos indecentes.

Cada um de nós que permite. Que contempla em silêncio, que diz para si mesmo, que horror, mas olha para o outro lado e se distrai esperando o concerto dos astros. A ocasião propícia para o fim da impotência. Nós que estamos loucos para, como eles, ousar ignorar a morte. A dos já mortos, a dos que morrerão e, quem sabe, a nossa própria. Moradores do mesmo limbo, encobertos pelos corpos decompostos, envoltos pela atmosfera pútrida, seguimos, indecentes.

Quando os poucos que são menos indecentes tomarem as ruas e quebrarem vidraças e apanharem da polícia, tenhamos pelo menos a decência de reconhecer que, se a densa noite cair sobre o país, a responsabilidade é, antes, nossa.

Vilma Aguiar é socióloga e feminista. Doutora em Ciências Sociais. Durante a pandemia está escrevendo O livro da quarentena https://www.instagram.com/aguiar_vilma/?hl=pt-br

Redação

3 Comentários

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  1. Gostei do texto. Ele é cheio de moralismo enrustido (nem político chega a ser) e termina com um currículo.
    Em tempos de fascismo, o que é fascismo nem mais se parece.

  2. Cidades para que(m)?
    POLÍTICA, URBANISMO E HABITAÇÃO
    Blog do João Sette Whitaker Ferreira

    a questão não é “covardia x valentia”
    June 08, 2020

    Li comentários e textos que avaliam as posições sobre ter ido ou não às ruas no domingo passado. Em geral, todas as que defendem à exposição ao Covid-19 buscam no passado argumentos da dura e sofrida luta contra a ditadura, como se estivéssemos agora revivendo 64. Talvez estejamos em muitos pontos, mas no principal, não: agora, a novidade é que temos uma pandemia que arrisca matar mais de cem mil pessoas, se continuar nesse ritmo. Para dar um exemplo do impacto sobre a sociedade, a Guerra do Vietnã, que impactou gerações de americanos, matou 60 mil jovens soldados dos EUA em dez anos.Já estamos na metade.

    O saudosismo um tanto inocente coloca em vários tempos a questão em termos de coragem, valentia, versus covardia. Há um problema ético ai: não se pode acusar de covardia quem age no intuito declarado de proteger milhares de vida, pelo menos até que a ciência, sim, ela mesma, nos diga que podemos fazer de outro jeito. A equação não está nesses termos. Aliás, entender a sociedade pelo crivo da valentia x covardia é reforçar um viés machista de que essas são as virtudes que determinam a ética social. Será? Acho que o registro está mais no âmbito da responsabilidade x irresponsabilidade das lideranças em um momento novo, que exige novos olhares e novas formas de ação. Por que? Porque senão, morreremos. Simples assim.

    Depois de dois meses lendo tudo que pude sobre epidemia e contágio, sobre saúde pública e a velocidade de transmissão do Covid; sobre como jovens assintomáticos estão certamente transmitindo muito acima do que seria esperado por um vírus; sobre o efeito cascata que pode ter a aglomeração de pessoas, muitas das quais assintomáticas (+ circulação de metrô, ônibus, etc.); sobre como o Covid se abate também sobre jovens, e aqui tem sido até mais do que em outros países; sobre o que acontecerá quando esses jovens precisarem de vaga nas UTIs já quase lotadas e pessoas mais velhas tiverem que ser deixadas para morrer…. (o que já vem acontecendo em Manaus segundo várias matérias);

    e diante da “euforia” militante que tomou uma enorme parte de gente amiga, que achou por bem ir ou apoiar ir às ruas…..em nome da tradicional e nobre causa democrática, antifascista e antirracista, que ninguém discute, e que felizmente agora parece que se escancara para além dos que só “faziam mimimi”;

    só tenho a dizer que espero, do fundo do coração, estar totalmente enganado desta vez. Quem sabe Bolsonaro tenha razão, e a ciência não seja assim tão certeira;

    porque não quero que daqui a um mês estourem as mortes dentre gente jovem, corajosa e de esquerda e seus familiares; que foram na cara e na coragem às ruas manifestar….

    Quando o genocida continua fazendo sua ação genocida, “fomos” às ruas ajudar no genocídio..

    Se estiver errado, o que eu espero, daqui a um mês irei ao supermercado sem máscara, ao bar ver os amigos. E às manifestações, obviamente.

    Se não estiver, registro aqui o que para mim foi a maior prova de irresponsabilidade de lideranças políticas que incentivaram jovens de boa fé a ir às ruas, e nem tão jovens a concordar com isso.

    Sou professor, e fico especialmente sentido quando se influencia jovens assim, sem uma reflexão maior sobre as consequências, para eles e para a sociedade;

    Maior prova de que essas lideranças não conseguem se renovar e sair da caixinha da boa e velha manifestação. Que é ótima, mas não hoje, não pondo em risco milhares de pessoas. Não em meio à maior pandemia que se tenha notícias, que mata mais de uma pessoa por minuto. Uma manifestação (de relativamente pouca gente, diga-se), será milagrosa para fazer mudar o cenário político atual? realmente? As quase duas milhões de mulheres e homens que foram às ruas dizer “ele não” não impediram sequer a eleição do fascista. As ruas são fortes, mas não devemos colocar nossa ansiedade por estarmos encerrados (os que podem) em casa acima da realidade. Quem dera fossemos de novo dois milhões a ir às ruas hoje. Mas, por outro lado, que sorte que não somos, pois seria um massacre. Não da PM (ela também), mas do Corona.

    Acho um pouco ingênua essa esperança de que algo está mudando porque muitas pessoas tomaram a coragem para um gesto um pouco suicida, embora muito respeitoso. Não acho que essa aposta duvidosa possa ser lançada por lideranças à custa do risco de milhares de vidas. Além desse fato sanitário, do ponto de vista político, onde fica nossa argumentação, respaldada internacionalmente, de que Bolsonaro está cometendo crimes ao incentivar manifestações ao seu favor? O crime (e é) vale para ele, mas não para nós?

    O STJ de São Paulo proibiu a manifestação, a esquerda clamou pelo cerco à liberdade de manifestação. Oi? Estamos em dias normais? A pandemia que mata sorrateira é fake news? Como iremos agora apontar que Bolsonaro está sendo um genocida ao incentivar a quebra da quarentena, se nós mesmos a quebramos?

    Que fique claro, quem vai pode estar com 100% de saúde, como vi muitos argumentarem, mas nunca saberá se é ou não assintomático, se está ou não transmitindo. Não é um problema dele, mas dos outros que se contaminarão com isso. Dos mais velhos que não terão vaga em hospital. Eles, se não apanharam da polícia covarde, truculenta e abjeta do Sr. Dória, estarão provavelmente bem e nem perceberão nada.

    Aprendi nos últimos meses o que é a responsabilidade social no âmbito da saúde pública. É ficar em casa se puder, me disseram. É no que Bolsonaro não acredita e não quer que aconteça. E nem as lideranças de esquerda que acharam por bem chamar às ruas.

    Ouvi de uma centena de pessoas que quem vai às ruas é gente que não tem como fazer isolamento, que não pode ficar em casa, e que trabalha “de qualquer jeito”, como entregador em geral. Se são obrigados “de qualquer jeito” a se arriscar no dia-a dia, que se arrisquem também na manifestação, não é mesmo? Não sei se sou só eu a ver uma posição terrivelmente elitista nesse argumento.

    Engraçado, porque nenhuma dessas cem pessoas era ela mesma entregadora e nem precisava ir às ruas pra trabalhar. Falava por eles. Se é para se preocupar com eles, não é com o raciocínio do “eles já estão se ferrando mesmo, não têm outra saída, então podem ir”, me desculpem. Ou no mínimo, deixar silenciosamente que essa decisão, terrível e corajosa, seja tomada por eles. Mas não usada por quem não está nessa situação como uma justificativa para “ser de esquerda” e clamar pela “coragem” frente à “covardia” às custas da coragem de outros.

    Claro que deve haver muitos dos que foram às manifestações que não têm como fazer quarentena. E eu fico mais triste, porque acho que se eles até conseguem manter atitudes de segurança com máscaras e distanciamento no seu duro dia a dia de trabalho, nas manifestações, a tal “segurança sanitária” propalada e prometida não por eles, mas pelos organizadores (que me parecem terem virado do nada grandes especialistas em saúde pública) é uma piada. Fico estarrecido de ver como muita gente com certa idade e estudo fala com enorme calma “eles estão tomando as medidas sanitárias adequadas”. É só ver as fotos, a proximidade entre todos.Ou então, tudo que foi dito até aqui era balela.

    Torço para que, no caso desses que foram, não seja lá que eles contraiam o vírus. Mas não acho que as manifestações irão mudar o comércio de entregas do qual se servem muitos dos que apoiaram, de suas casas, a ida às ruas. E nem sei se deveria, porque não quero que eles percam seu emprego. Quero que se cuidem muito ao fazê-lo. E todas as recomendações dizem que aglomerações, como as manifestações, são a pior coisa se fazer.

    Ouvi de outros tantos que super apoiam as manifestações, que é o momento, que quem foi às ruas é corajoso, mas eles mesmos, não foram. Por mil razões, todas justas, em geral por “estar em grupo de risco”. Que sorte, assim não precisa ir. Eu sou diabético, e não fui. Mas se não fosse, também não iria. As pessoas sempre conhecem quem foi, e justificam que são pessoas negras, militantes da saúde, gente que não aguenta mais. E, por isso, podem se arriscar mais? “Apoio mesmo” quem tem coragem de ir para a rua? Me desculpem, eu não jogo com a vida alheia. Mesmo que seja alguém com muita “coragem”. Repito, essa não é a questão, pois a coragem de jovens, se tiverem realmente consciência da pandemia, é louvável. Mas e se estiverem achando que ela “não é tudo isso que falam”, como ouvi de muita gente? Qual a responsabilidade de quem os faz acreditar nisso?

    Se o momento é esse de uma mobilização que vai arrasar o Bolsonaro, então, porque não vão, todos os que falam a favor, às ruas? Será que não é porque, no fundo, querem se preservar do risco? São grupo de risco? E porque os que tem “legitimidade” para estar lá não deveriam, eles também, se preservar? Aprendi também que em pandemias assim não há mais grupo de risco. Todos somos, uns mais, outros menos, mas ninguém sabe em quem a morte pode se abater. Qualquer um. Inclusive aquele, que foi à rua por você.

    Há dois meses eu gritei horrorizado que era uma loucura as aglomerações festivas com motos e carro de som na Brasilandia, aqui em São Paulo. Não havia nenhuma avaliação de juízo ou moral contra funk ou o que fosse, até mesmo porque apontei também a loucura das pessoas indo ver o pôr do sol em uma praça de bairro rico. Mas fui cobrado que não deveria expor negativamente a população da periferia ajudando a estigmatizá-la. Fiquei incrédulo que, naquele momento, o crivo “rico de bairro rico x pobres da periferia” balizasse uma discussão que não tinha nada de política, mas era exclusivamente sanitária! Não deu outra:15 dias depois a Brasilândia explodiu com o maior número de mortes na cidade em uma semana. Era para não falar nada porque não se pode criticar a vida e a cultura da periferia? Mas e agora, que muitos dos jovens que lá estavam viram a morte de seus pais, avós, ou deles mesmos, como uma menina de 18 anos que o Covid abateu? De que valia aquela discussão?

    São as contradições brasileiras, sempre.

    Ao mesmo tempo, recebi fotos tocantes do pessoal que, na Brasilandia justamente, depois do ocorrido, se organiza de forma esplêndida e solidária e usou o domingo de sol para ir às ruas no desespero, para distribuir máscaras, doações, conscientizar. Também foram às ruas, se colocaram em risco. Para tentar salvar os que justamente não têm como se isolar. Bem diferente. Ouço também muita gente falar que “de qualquer jeito, quem vai às manifestações não tem outra opção porque não tem como fazer quarentena”. É uma balela. Há muitas coisas a fazer para amenizar, mesmo que em condições urbanas difíceis. Essa turma se desdobra para fazer isso: levar alimentos, distribuir máscaras, álcool gel, visitar famílias e medir temperatura, e assim vai. Dizer que o pessoal pode ir para a manifestação porque “não muda nada” é um tremendo desrespeito ao trabalho solidário desse pessoal.

    Lá, ninguém falava no Largo da Batata.

    Acho que nosso caminho rumo ao recorde mundial arrisca ser rápido. E o pior, não sei se teremos argumentos para responsabilizar Bolsonaro por isso. Sendo que isso, a pandemia que já matou provavelmente duas vezes mais do que os mais de 31 mil anunciados (dizem os especialistas sérios), é de grande parte responsabilidade dele. Essa é sua ação verdadeiramente fascista e eugenista. E o que ele mais quer é que ela se naturalize, para que não possa ser acusado de todos os crimes que vem cometendo.

    Está certo o Emicida.

    Bolsonaro deve estar agradecendo às lideranças de oposição que o ajudaram nisso. Agora com os números escondidos, podemos talvez voltar todos à vida normal, quem sabe? Talvez a terra seja mesmo plana, afinal.

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