Somos um povo melhor que os árabes, por Sayed Kashua

Enviado por Felipe A. P. L. Costa

O artigo a seguir, sob o título ‘Why I have to leave Israel’, foi publicado originalmente no The Guardian, em 20/7/2014. O autor, Sayed Kashua, é um jornalista e escritor árabe-israelense, cujos romances já foram traduzidos e publicados em mais de uma dezena de idiomas. O filme Dancing arabs (2014) foi baseado em seu primeiro romance.

A tradução para o português, de F. Ponce de León, organizador do livro Poesia contra a guerra (2015), apareceu no Observatório da Imprensa, em 13/6/2016.

“Somos um povo melhor que os árabes”

por Sayed Kashua

Muito em breve irei embora daqui. Em poucos dias, deixaremos Jerusalém, deixaremos o país. Ontem, compramos maletas para as crianças. Não precisaremos levar muita roupa, deixaremos nossas roupas de inverno; em todo caso, elas não aquecem o suficiente, dado o frio que faz no sul de Illinois, EUA. Precisaremos apenas de algumas coisas, até nos instalarmos. Talvez as crianças levem alguns livros, dois ou três em árabe e alguns outros em hebraico, para que não esqueçam os idiomas. Mas já não sei se quero que os meus filhos se lembrem deste lugar, tão amado e tão amaldiçoado.

O plano original era sair no mês que vem para um ano sabático. Semana passada, porém, compreendi que não posso mais permanecer aqui e pedi ao agente de viagem que nos tirasse daqui o quanto antes, “e, por favor, arranje apenas passagens de ida”. Em poucos dias desembarcaremos em Chicago e eu sequer sei onde passaremos o primeiro mês, mas nós daremos um jeito.

Tenho três crianças, uma filha que já tem 14 anos, e dois filhos, com idades entre nove e três anos. Vivemos em Jerusalém ocidental. Somos a única família árabe vivendo em nossa vizinhança, para onde nos mudamos há seis anos. “Você pode escolher dois brinquedos”, dissemos em hebraico esta semana para o nosso filho pequeno que estava em seu quarto, olhando fixamente para as suas caixas de brinquedos, e ele começou a chorar, apesar das nossas promessas de que iremos comprar qualquer coisa que ele queira quando chegarmos lá.

Também tenho de decidir o que levar. Só posso escolher dois livros, disse a mim mesmo, diante das prateleiras de livros em meu quarto de estudo. Exceto por um livro de poesia de Mahmoud Darwish e uma coleção de histórias de Jubran Khalil, todos os meus livros estão em hebraico. Desde os 14 anos, eu raramente li um livro em árabe.

Colégio interno em Jerusalém

Vi uma biblioteca pela primeira vez quando tinha 14 anos. Vinte e cinco anos atrás, o meu professor de matemática, na cidadezinha de Tira, onde nasci, veio até a casa dos meus pais e disse a eles que, no ano seguinte, os judeus abririam uma escola para alunos superdotados em Jerusalém. Ele disse ao meu pai que achava que eu deveria me inscrever. “Lá será melhor para ele”, lembro dele dizendo aos meus pais. Eu me inscrevi e, quando estava com a idade da minha filha, deixei minha casa e fui para um colégio interno judaico em Jerusalém. Foi muito difícil, quase cruel. Chorei quando o meu pai me abraçou, me deixando no portão da nova e grandiosa escola, bem diferente de tudo o que eu já havia visto em Tira.

Certa vez escrevi que a primeira semana em Jerusalém foi a pior semana da minha vida. Eu era diferente, estranho; minhas roupas eram diferentes assim como o meu idioma. Todas as aulas eram em hebraico – ciência, Bíblia, literatura. Sentei-me ali sem entender uma palavra. Quando tentei falar, todos riram de mim. Quis muito correr de volta para casa, para a minha família, a cidadezinha e os amigos, para o idioma árabe. Chorei ao telefone com o meu pai, pedindo que viesse me apanhar, e ele disse que apenas o começo é difícil e que em poucos meses eu falaria hebraico melhor que os demais.

Lembro que, na primeira semana, o professor de literatura pediu que lêssemos O apanhador no campo de centeio, de Salinger. Foi o primeiro romance que eu li. Levei várias semanas para lê-lo e, quando terminei, percebi duas coisas que mudaram a minha vida. A primeira foi que eu podia ler um livro em hebraico e a segunda foi uma profunda compreensão de que amava os livros.

Meu hebraico melhorou muito rapidamente. A biblioteca do colégio interno só tinha livros em hebraico e, assim, eu comecei a ler autores israelenses. Li Agnon, Meir Shalev, Amos Oz, e comecei a ler sobre o sionismo, sobre o judaísmo e a construção da terra natal.

Ao longo dos anos, comecei a entender também a minha própria história e, sem ter planejado, comecei a escrever sobre os árabes que vivem em um colégio interno israelita, na cidade ocidental, em um país judeu. Comecei a escrever, acreditando que tudo o que eu tinha de fazer para mudar as coisas seria escrever sobre o outro lado, contar as histórias que ouvia da minha avó. Escrever como o meu avô foi morto na batalha de Tira, em 1948, como a minha avó perdeu todas as nossas terras, como ela criou o meu pai, sustentando-o como colhedora de frutas paga por judeus.

Contando histórias em hebraico

Queria contar em hebraico sobre o meu pai, que ficou preso durante muitos anos, sem julgamento, por suas ideias políticas. Queria contar aos israelitas uma história, a história da Palestina. Quando lerem, eles certamente compreenderão, quando lerem, eles irão mudar; tudo o que tenho de fazer é escrever e a ocupação terminará. Tenho apenas de ser um bom escritor e libertarei o meu povo dos guetos onde vive, contarei boas histórias em hebraico e serei salvo, outro livro, outro filme, outra coluna de jornal e outro roteiro para a televisão e os meus filhos terão um futuro melhor. Graças às minhas histórias, um dia nós nos tornaremos cidadãos iguais, quase como os judeus.

Vinte e cinco anos escrevendo em hebraico e nada mudou. Vinte e cinco anos agarrado a uma esperança, acreditando que não é possível que as pessoas sejam tão cegas. Vinte e cinco anos durante os quais tive poucas razões para ser otimista, mas continuei a acreditar que um dia este lugar onde os judeus e os árabes vivem juntos seria uma única história, na qual a história do outro não fosse contestada. Que um dia os israelitas iriam parar de contestar o Nakba [ver aqui], a ocupação e o sofrimento do povo palestino. Que um dia os palestinos estariam dispostos a perdoar e, juntos, iríamos construir um lugar que fosse digno de se viver nele.

Escrevo há vinte e cinco anos, ouvindo críticas desagradáveis de ambos os lados, mas na semana passada eu sucumbi. Na semana passada, alguma coisa se quebrou dentro de mim. Quando a juventude judaica desfila pela cidade gritando “Morte aos árabes”, atacando árabes apenas porque eles são árabes, percebo que perdi a minha pequena guerra.

Prestei atenção nos políticos e na mídia e sei que eles estão diferenciando entre raças, entre povos. Aqueles que se tornaram poderosos dizem expressamente o que a maioria dos israelenses pensa, “Nós somos um povo melhor que os árabes”. Em debates dos quais participei, foi dito que os judeus são um povo superior, com mais direito à vida. Perco a esperança ao saber que uma maioria absoluta da população não reconhece o direito à vida de um árabe.

“Pai, eu sei disso há muito tempo”

Após minhas colunas mais recentes, alguns leitores suplicaram para que eu ficasse exilado em Gaza, ameaçaram quebrar minhas pernas, sequestrar meus filhos. Vivo em Jerusalém e tenho alguns vizinhos e amigos judeus maravilhosos, mas ainda não posso levar meus filhos a acampamentos ou a parques com os seus amigos judeus. Minha filha protestou furiosamente, dizendo que ninguém saberia que ela é árabe, por causa do seu hebraico perfeito, mas eu não liguei. Ela se trancou no quarto e chorou.

Estou agora diante de minhas estantes, com o Salinger na mão, o mesmo que li há 14 anos. Não quero levar nenhum livro, decidi, tenho de me concentrar em meu novo idioma. Sei como é difícil, quase impossível, mas devo encontrar outro idioma para escrever, meus filhos terão de encontrar outro idioma para viver.

“Não entre”, gritou com raiva minha filha quando bati na porta. Entrei assim mesmo. Sentei ao lado dela na cama e, embora estivesse de costas para mim, sabia que ela estava ouvindo. Ouça, eu disse, antes de repetir para ela exatamente a mesma frase que meu pai me disse, 25 anos atrás. “Lembre-se, faça o que fizer na vida, para eles você sempre, mas sempre mesmo, será uma árabe. Entende?”

“Entendo”, ela disse, me abraçando forte. “Pai, eu sei disso há muito tempo”.

“Logo nós vamos embora daqui”, disse eu, enquanto bagunçava o seu cabelo, do jeito que ela odeia. “Até lá, leia isto”, e dei a ela O apanhador no campo de centeio.

 

Redação

9 Comentários

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  1. Triste

    O mesmo povo que foi vítima de uma tentativa de extermínio há menos de 100 anos, atualmente reproduz muito do que lhe fizeram, neste caso contra os palestinos.

    E o mais bizarro é essa aura de povo acima das críticas….    não foi 1 nem 2 vezes que fui interpelado ou acusado de anti-semita por fazer críticas ao regime de apartheid que vigora em Israel….    acusado seja por judeus, seja por ‘gentios’ que introjetam essa ideologia de que os hebreus têm passe livre pra ignorar resoluções da ONU, ignorar os direitos fundamentais dos árabe-israelenses e dos palestinos. 

    Algo está errado quando determinado grupo tem um status de “acima de qualquer crítica”….   e outro tem um status de “abaixo de qualquer consideração”…   não importa que povo esteja ocupando o lugar acima ou o lugar abaixo.

    1. Trata os judeus como um bloco
      Trata os judeus como um bloco monolítico e reclama de ser chamado de antissemita? Como se muitos judeus também não fossem críticos da situação dos árabes israelenses ou da não criação do Estado palestino ao lado de Israel. Quanto à ONU, a sua resolução que determinou a partilha da terra e a criação de dois estados na sua origem não foi aceita pelos árabes. Hoje pode se dizer que a não aceitação dessa resolução é mútua. Mas vamos cobrar que só um lado respeite a ONU.

  2. Jamais haverá paz duradoura na terra.

    Os judeus se acham melhor que seus primos árabes, (esqueceram o genocídio do holocausto)  a dita supremacia branca se julga superior a todas raças, inclusive os judeus. Assim caminha a humanidade, por séculos ou talvez milênios a segragação racial continuará, e com ela a impossibilidade de paz duradoura  na terra.

  3. História com muitas

    História com muitas semelhanças com os brancos minoritários no Brasil, donos da maior parte da riqueza do país e que foi construída com o sacrifício e morte de milhões de negros. Muito semelhante às dezenas de milhares de negros assassinados no Brasil todos os anos e que são considerados sub gente. Muito semelhante aos brancos brasileiros, especialmente aqueles donos da maior parte das terras e gozando de privilégios há centenas de anos e que ainda acham que são melhores que os negros. 

  4. Este espaço democrático aqui

    Este espaço democrático aqui carece de negros falando para os negros e para os brancos que são parceiros de lutas!

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