‘The Falling Man’ e o inverso do Direito, por Eliseu Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Richard Drew. The falling man¹ (em montagem)

‘The Falling Man’ e o inverso do Direito

por Eliseu Raphael Venturi

Como simples pertença à categoria “fato” ou “evento”, por si, onze de setembro já renderia milhões de interpretações em busca de uma verdade e de causalidades. Seja na superfície de um longa-metragem ou na fragmentação de milhares de imagens de igual interesse, seja na profundidade das tramas das relações internacionais.

Um foco de atenção rodeado por dezenas de câmeras e milhares de pontos de vista individuais, reafirmando as parcialidades e os perspectivismos dos olhares sobre um mesmo objeto, na mais ajustada expressão do contato de metáfora e realidade, somado às atualizadas versões dos novos observadores.

Este seria apenas um começo de imagens e de decisões para todo o desdobrar havido em quase duas décadas: guerras, execuções, processos selados, acordos feitos, arranha-céus reerguidos. Vídeos, fotos, áudios de telefonemas, mensagens de texto, relatos desesperados inéditos até hoje aparecem, renovando cada microcélula do acontecimento: qual o limite da realidade?

A magnitude e a conjuntura deram-lhe dimensões de uma infinita reverberação.

A emergência e repetição midiática representaram mais do que nunca um drama ao vivo e reavivado para os olhos que, durante décadas anteriores, se educaram no cinema-catástrofe, no reiterado exercício da imaginação e, muitas vezes, de gozo (sádico, visual, político) do trágico.

Todos precisam relatar o momento, até hoje, para se integrar, à sua distância, no enredo e na história. O que se fazia naquele dia, qual a primeira impressão se teve, e o resto todo é decorrência das mais variadas leituras, conspirações, opiniões. Entretece-se uma rede de sentidos de que muita urdidura ainda se fará, nas variantes da abertura de caminhos, como é a história viva e sempre revisitável.

O manancial interpretativo do onze de setembro redimensionou a semântica da data, da cidade, do país hegemônico, dos sonhos e de todos os temas que possam advir daquele contexto, tais como capitalismo, neoimperialismo, neoliberalismo, políticas de resistência, terrorismos, direitos humanos. A ópera do nosso tempo.

Os afetos, assim, ainda hoje são tocados desde um sentimento de solidariedade nas relações micropolíticas até uma certa satisfação nos termos macropolíticos.

O potencial estético do terror e do horror se expressou, igualmente, com a ironia impressionista de um céu azul límpido – imagine-se o grau de apelo sensitivo do evento em um dia nublado – e um sol de aparência agradável, apesar das oscilações daquela estação. “As clear as an azure sky of deepest summer”, como diria o anti-herói da ultraviolência Alex DeLarge.

Do silêncio das fotografias de Reinhard Karger², realizadas na manhã de 11 de setembro horas antes dos ataques, tem-se o absurdo desconforto enquanto prenúncio do inferno, assim como o são a série de relatos do dia anterior³. Ou a foto de Thomas Hoepker de 1983[4], com casais felizes. Ou tantas infinitas outras cenas de cinema, jogos de vídeo game, videoclipes.

Pássaros indiferentes como detalhes vivos em seu trajeto normal, a serenidade da água e o branco tracejado efêmero do deslocamento dos barcos, em um recorte de cidade cuja estática adornada, graduada em cinza no plano geral, e visualmente ordenada em grades tão exploradas em suas incongruências de uma vida fora de equilíbrio em Koyaanisqatsi (1982), manteve o ritmo singelo desde os ataques até à queda e dispersão da fumaça que velou a tragédia.

Viu-se um rasgo racional, crescente e incontrolável na ordem, evidenciado pela densa explosão rubra colorindo de inevitabilidade da morte. Pelos destroços serpenteando traços irregulares no espaço. Pela cadência das surpreendentes e angustiantes folhas de papel e carne revoando abaixo em uma pueril dança macabra. Pela tóxica fumaça do cinza escuro ao negro ascendendo o pavor, dispersando-se ao fim em uma viva matéria amarelada que representou a conversão em poeira de toda sorte de valores.

As sonoridades urbanas, sirenes, gritos, músicas-ambiente e olhos fitados em pleno espanto, comentários de jornalistas, o agudo som das turbinas do avião e sua milimétrica e suave inserção na malha predial, seguido do choque e explosão, dos flagrantes de impactos dos corpos no chão ou nos telhados, tudo isto aproximou do real significado envolvido, deixando a ficção e o observador atônitos, porque toda realidade remete a uma intransponível microfísica que continuamente renova a totalidade inconclusa. Anos e anos depois ainda se encontrariam fragmentos de corpos pelos telhados dos arredores, assim como ainda se produziriam mais mortes decorrentes.

A magnitude se reforçou pela altitude, pelo olhar voltado para cima ante o vasto horizonte da sofisticada cidade de moda, arte, vanguarda, consumo. Verticalidade e horizontalidade, equilíbrio e queda, em cima e embaixo, norte e sul: o desenho de Minoru Yamasaki, com todas as suas linhas sóbrias e elegantes com uma leve memória gótica, foi em segundos posto em cabal cheque pela força bruta que tudo leva em sua enxurrada. A gravidade espreita.

Em todo o nefastíssimo cenário, como produto dos olhares atordoados, emergiu uma fotografia que, em pouco tempo, desvinculou-se da função meramente indicial e assumiu os postos de ícone — sendo mais poderosa mesmo do que a imagem dos prédios em chamas — do onze de setembro, posto que sintetizou as cruéis perdas humanas, o desespero e a impossibilidade de escolha.

Trata-se da hoje conhecidíssima foto de Richard Drew, “The falling man” – são imprescindíveis dois artigos capitais de Tom Junod, interpretando a imagem, publicados na revista Esquire [5], foto então selecionada de uma série de disparos do fotógrafo, como tantos outros, no calor do risco e do momento.

A composição, em si, é minimalista, equilibrada, de simetrias em jogos de forças verticais e horizontais equalizados, uma quase monocromia de variações sutis como as veladuras da fumaça ao plano lateral e de fundo, ecoando a caída.

A nitidez dos contornos do homem, com a silhueta bem humana, e não uma massa em queda como tantos outros pareciam, quase como um desenho dos homens trucidados na cidade, de Roberto Longo [6] dos anos 1980, se alinha aos elementos arquitetônicos, e a direção das diagonais descendentes da esquerda para a direita enfatiza a velocidade para baixo, força geral da imagem.

Não apenas na sua organização interna a fotografia é coerente, como o seu sentido é de uma constatação chocante quando a imaginação assimila o todo e une o início e o fim da cena descrita; quando a mente desencadeia os nexos causais e a alteridade e empatia exercem sua função de deslocamento pessoal.

Uma análise da forma da fotografia pode prescindir de valores éticos, porque nada diz respeito a eles, sendo apenas constatação de ordenação da linguagem; tanto assim que a analogia com a foto de Pedro Martinelli [7], em cena similar e contexto distinto, no incêndio do Edifício Joelma, é imediata.

O enfrentamento dos sentidos e, principalmente, do que está além deles, despertado pela enunciação do suporte formal da imagem, traz problemas graves ao observador, tanto assim que a censura, o pudor e o não-olhar são reações imediatas e, por isso mesmo, a fotografia foi tão polêmica quando de sua publicação original, entre o sórdido e o macabro.

Magistralmente, em termos de sobriedade e maturidade, Susan Sontag realizou diversos embates do gênero em Diante da Dor dos Outros (2003), sempre deixando as interpretações abertas e convidando para o juízo pessoal da indiferença, do assombramento, do compadecimento, da reflexão ou de toda sorte de reações emocionais e intelectuais a partir das imagens e para além das imagens.

Aliás, uma foto de Thomas Hoepker [8], publicada apenas em 2006, em que jovens assistem à distância a cena do atentado, parece um exemplo contundente das interpretações, problemas e rumos das imagens.

Nesse sentido, uma problemática ética da visão no mundo-imagem é delineada por Sontag ao discutir o fotojornalismo de guerra, e a foto “The Falling Man”, assim como das demais envolvidas no contexto, integra tais preocupações.

Seja por suas relações formais entre branco e preto, vida e morte, vertical e horizontal, anverso e inverso, seja por outras tão pujantes respectivas a sua representação, é grande o potencial da imagem para levantar problemas, a toda evidência também jurídicos de base. Problemas que vão desde um pós-antropocentrismo até um inevitável apego à dignidade humana.

Como concluiu Susan Sontag a respeito do fluxo que as imagens tomam: “[…] as intenções do fotógrafo não determinam o significado da foto, que seguirá seu próprio curso, ao sabor dos caprichos e das lealdades das diversas comunidades que dela fizerem uso.” [9]

Isto leva à consideração de que a comunidade jurídica, insitamente implicada pela tutela preventiva, inibitória e reparadora dos direitos, no plano interno e internacional, seja pelos instrumentos legais, seja pelos dispositivos constitucionais, pelo teor da proteção internacional dos direitos humanos e pela via diplomática, necessariamente construirá seus sentidos na fotografia “The Falling Man”.

Uma crise do Direito, ainda será este o argumento? Uma ausência de hermenêutica e de vinculação jurídica dos agentes sociais, verificando-se inclusive as consequências suportadas tanto pelo homem-coletividade quanto pelo indivíduo? Um exercício político extremo?

O vácuo jurídico do onze de setembro não advém necessariamente de um Direito incapaz, desequipado, sem vértices normativos, axiológicos ou mesmo instrumentais, mas antes da incapacidade dos agentes em se vincularem aos preceitos daquele.

Esta constatação parece produzir um duplo movimento de consternação e de continuidade que animam a técnica do Direito em todos os cenários de guerra, genocídio, crimes contra a humanidade. Em toda justiça de transição e em toda crítica e vigilância permanentes.

É um exemplo da ruptura estabelecida entre violência e negociação, entre força e racionalidade, entre guerra e diplomacia. Problemáticas como esta reacendem as questões da efetividade jurídica e os problemas de a realidade ser ou não conformada à linguagem jurídica, afetando-se sobremaneira os pontos da cogência do Direito.

Como resultado constante deste descompasso, o homem em queda, no sempre triste fim da vida, da morte violenta, imposta, indesejada, inesperada, morte mesmo anônima da violação jurídica que se renova pelos discursos e práticas da adversidade.

Um mundo a despeito de uma racionalidade jurídica garantista, dos mais altos direitos declarados, do contrastante trabalho contínuo de universalização dos direitos humanos e de conscientização dos mecanismos de solução pacífica de controvérsias e de convivência ante profundas diferenças, biopolíticas e tanatopolíticas.

Tal como as imagens, um enigma insolúvel, que demanda uma ética da visão.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

¹ Richard Drew. The falling man. Associated Press. Disponível em: <http://100photos.time.com/photos/richard-drew-falling-man>. Acesso em: 10 set. 2018
² Reinhard Karger. Eine Woche im September 2001. Disponível em: < https://itunes.apple.com/de/book/eine-woche-im-september-2001/id503295915>. Acesso em: 10 set. 2018. Fotos disponíveis em: <https://www.flickr.com/photos/september-2001/sets/72157627589907154>.
³ ABC News. The day before the storm: Photos of Sept 10, 2001. Disponível em: <http://www.abc.net.au/news/specials/september-11-remembered/2011-09-05/the-day-before-the-storm-september-10-2001-photos/2870854>. Acesso em: 10 set. 2018.
Thomas Hoepker. USA. New Jersey. 1983. Downtown Manhattan with World Trade Center towers, seen from “lover’s lane’ in New Jersey. Disponível em: <https://pro.magnumphotos.com/C.aspx?VP3=SearchResult&STID=2S5RYDIHAOWL>. Acesso em: 10 set. 2018.
JUNOD, Tom. The falling man. Esquire magazine. Disponível em: <http://www.esquire.com/features/ESQ0903-SEP_FALLINGMAN>. Acesso em: 10 set. 2018. ______. Surviving the fall. Esquire magazine. Disponível em: <https://www.esquire.com/news-politics/news/a10891/the-falling-man-10-years-later-6406030>. Acesso em: 10 set. 2018.
Roberto Longo. Men in the cities. Disponível em: <https://www.robertlongo.com/series/meninthecity>. Acesso em: 10 set. 2018.
Pedro Martinelli. Edifício Joelma. Disponível em: <http://www.pedromartinelli.com.br/blog/edificio-joelma>. Acesso em: 10 set. 2018.
Thomas Hoepker. Brooklyn, September 11. Disponível em: < https://pro.magnumphotos.com/C.aspx?VP3=CMS3&VF=MAGO31_10_VForm&ERID=24KL5351FG>. Acesso em: 10 set. 2018. O relato do fotógrafo pode ser lido em: <http://www.slate.com/articles/arts/culturebox/2006/09/i_took_that_911_photo.html>.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 36. Questão também abordada em: ______. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 
 
 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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