“Tudo pode ser criticado, mas nada mudará”: a cultura do cinismo neoliberal, por Erick Kayser

Nestes tempos de hegemonia neoliberal, uma de suas características é a de um sentimento de “conformismo crítico” que funciona como uma regra dominante.

Obra de Lara Zankoul

“Tudo pode ser criticado, mas nada mudará”: a cultura do cinismo neoliberal

por Erick Kayser

Nas últimas décadas, o capitalismo em sua fase neoliberal, pode avançar sua agenda de ajustes em quase todo o globo terrestre, consolidando uma hegemonia que redefiniu muitas coordenadas do funcionamento do sistema capitalista. Se algumas de suas consequências aparecem de forma mais evidente no campo econômico (ampliação das desigualdades) e político (crise das democracias), no campo subjetivo-ideológico está situada uma das principais “arenas” de combate pelos ideólogos do neoliberalismo. A esquerda muitas vezes negligencia a arena ideológica, o que tem se mostrado um erro fatal, afinal, nenhum sistema de dominação pode surgir, e muito menos permanecer e se aprofundar ao longo das décadas, sem a existência de um aparato cultural que se estenda bem além da simples propaganda.

Nestes tempos de hegemonia neoliberal, uma de suas características é a de um sentimento de “conformismo crítico” que funciona como uma regra dominante. Se, em outro tempos, a “propaganda oficial” buscava vender uma imagem de perfectibilidade, exaltando de forma unidimensional as virtudes e conquistas atingidas pelo sistema, estas coordenadas discursivas foram substituídas por uma espécie de “realismo capitalista”, na precisa definição de Mark Fisher. A apologética discursiva do capitalismo como um “reino de virtudes” passa não só a conviver com um algum nível de crítica interna, mas a assimilar, pragmaticamente, estas contradições e problemas, como sinais virtuosos.

A lógica discursiva é “O capitalismo não é ‘perfeito’, mas é o único sistema que ‘funciona’, assim, as críticas e até mesmo algum nível de revolta são permitidos, desde que não ultrapassem certos limites implicitamente impostos. O maior destes limites é a própria lógica do capital, tida como eterna e impossível de ser enfrentada ou contornada. Para se superar as lógicas capitalistas é preciso enfrentar a crença de que tudo merece crítica, mas apenas em um nível aparente, sem demandar nenhum nível de ação, afinal, não vale a pena engajar-se, porque nada mudará.

Mas aqui não ocorre nenhum evento “natural”. Os sentimentos de desesperança precisam ser engendrados. Embora possam ser difundidos por técnicas de propaganda — o “não há alternativa” de Margaret Thatcher é um exemplo –, para que sejam incorporados na “consciência” de mulheres e homens, é preciso esforço cultural contínuo. A ideologia se “materializa” através de instituições variadas, estes “aparelhos ideológicos” operam cotidianamente, buscando impor sua estrutura de visão do mundo.

Em nosso tempo, essa visão pode ser sintetizada no cinismo como expressão cultural de nossa época. Um cinismo desolador que vêm acompanhado de um pessimismo profundo, para o qual mesmo que as coisas estejam muito ruins não há nenhuma alternativa, o que acaba mantendo as sociedades paralisadas de uma maneira mais eficaz que qualquer força policial. Esta “razão cínica” articula-se com o fatalismo coletivo para constituir uma força desorganizadora, como argumenta o bom livro de J. D. Taylor Negative Capitalism: Cynicism in the Neoliberal Era (“Capitalismo negativo: o cinismo na era neoliberal”) publicado pela editora inglesa Zero Books. Ainda que o cinismo venha a assumir formas variadas, e até mesmo funcione com frequência como uma forma de proteção contra um mundo indiferente, Taylor vai conceitualizar como “a resistência psicológica pervertida do indivíduo moderno, que se recusa a acreditar em governos ou na mídia, mas também renuncia a fazer qualquer coisa contra a desgovernança ou a desinformação.” [pg. 102]

Num sistema econômico globalmente integrado e regido desproporcionalmente pelo capital financeiro, onde o neoliberalismo atua para sedimentar e legitimar a escalada de desigualdades desencadeadas neste processo, esta cultura da resignação, para que a roda do hamster não pare de girar, precisa contar com variados subterfúgios, ainda que efêmeros, que substitua a falta de poder político, como aponta Taylor:

“O trabalho contemporâneo é frenético e, em meio a ele, raramente se vê os amigos. A tela do computador é a janela pela qual um mundo sempre desperto e alerta bombardeia nossos neurônios com emails importantes, spams de Viagra, narcisismo, catástrofes contínuas e pornô faça-você-mesmo. Essa mudança ontológica no status de ser humano é uma das razões essenciais para o profundo senso de mal-estar e depressão que existe nos jovens adultos hoje. Esse modo de viver não é suficiente, e quando alguém não é mais capaz, ou escolhe não se comportar como simples consumidor, ou interagir com o mundo por meio de logotipos de publicidade ou aplicativos, a raiva e a frustração crescem. … A vida está ficando mais difícil, empobrecida, deprimente e monótona. Isso não é inevitável, e certamente não deveria ser aceitável — mesmo que muitos continuem a ceder ao aspecto sombrio da existência cotidiana, por falta de alternativas credíveis.” [pg. 15-16]

Como resultado, esta recusa de agir não pode transformar-se em outra coisa senão a aceitação da ordem vigente,o que acarreta profundas implicações políticas: “O fatalismo coletivo é uma crença em massa de que uma mudança significativa é impossível. Os indivíduos outorgam sua tomada de decisões, na expectativa de que alguém vá fazê-la em seu nome, com ou sem seu consentimento. Isso leva a uma infantilização de cidadãos, que gozam sua falta de poder convertendo-se em consumidores solitários… para os quais as compras são seu derradeiro e significativo ato de afirmação, sinalizando um novo tédio que, na falta de alternativas, leva ao fascismo.” [pg. 105-106]

A crítica a este estado de coisas é uma urgência de nossa conjuntura, mas, ao contrário do “tudo pode ser criticado, mas nada mudará” típica da cultura do cinismo neoliberal, nosso esforço deverá ser o de demonstrar a possibilidade da crítica promover transformações. Entra em cena um otimismo revolucionário como antídoto para o cinismo paralisante, mas, como alerta Taylor:

“O otimismo não pode significar a construção coletiva de mentiras convenientes, para tornar as pessoas infelizes mais capazes de enfrentar seus infortúnios. Ao invés disso, ele articula a criatividade necessária para ir além dos meios hoje existentes e envolver-se num patamar de atividade novo e desconhecido. O otimismo é criativo… O pessimismo é reacionário… Sua incapacidade de dar conta da natureza violenta do desejo, tanto cultural quanto biológico, o conduz à submissão cínica. O neoliberalismo é um sistema poderoso deste tipo.” [pg. 87].

Taylor argumenta, corretamente, que o resgate de uma criatividade política para a esquerda é essencial para qualquer movimento que busque uma alternativa ao capitalismo. Capitalismo Negativo oferece uma curiosa mistura de pensamento revolucionário e reformista.

Certamente, para emergir um movimento global de superação do capitalismo, ele não poderá crescer sem que hajam ideias que antecipem como um mundo melhor seria e objetivos imediatos tangíveis para a maioria das pessoas. Apesar de nunca mencionado por Taylor em seu livro, é inevitável lembrarmos aqui o conceito de Leon Trotsky de “programa de transição”: objetivos e demandas que pareçam reformistas e inicialmente possam ser trabalhadas como reformas, mas que ao fim, são “grandes demais” para serem acomodadas pelo capitalismo e só podem ser atingidas através de uma transformação que invariavelmente aponta para uma transição à um sistema novo e diferente. É uma possibilidade, mas com um longo e tortuoso caminho a ser percorrido. Andemos!

Erick Kayser é Historiador. 

Redação

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