Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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Ulisses e o canto das sereias: a proto-história da subjetividade moderna, por Michel Aires de Souza Dias

Como Adorno e Horkheimer (1978) avaliaram, o mal não deriva da racionalização do nosso mundo, mas da irracionalidade com que essa racionalização atua.

Ulisses e o canto das sereias: a proto-história da subjetividade moderna

por Michel Aires de Souza Dias

Adorno e Horkheimer procuraram desvelar na Dialética do Esclarecimento a face oculta da razão, seu lado subterrâneo. O progresso do pensamento fez surgir uma nova forma de miséria humana: a cultura da barbárie. A humanidade ao levar às últimas consequências o esclarecimento, recaiu em um estado de violência sem precedentes. Historicamente, a faculdade subjetiva de pensar foi o instrumento crítico que dissolveu os mitos, a religião e a metafísica. A razão na ânsia de sua própria autonomia e autodeterminação, destruiu todos os seus oponentes, tornando-se um instrumento formal, que serve a todos os fins. Nesse sentido, ela serviu muito mais ao capital e às relações de dominação do que ao bem-estar e à felicidade dos indivíduos. O resultado disso foi a experiência de duas bombas atômicas, o holocausto de 6 milhões de judeus, os vários genocídios no século XX, a pobreza, a violência e a miséria da população nos grandes centros urbanos. Walter Benjamin (1994), em seu texto “Sobre o conceito de história”, compreendeu o progresso como um continuum de catástrofe permanente. Para ele, não há um documento da cultura que não seja um documento da barbárie.

Hoje, vivemos em uma realidade cada vez mais racionalizada, cada vez mais enclausurada e socializada. A racionalidade técnica eliminou qualquer tentativa de ruptura, impedido qualquer forma de subjetividade autônoma. O aparato produtivo e as mercadorias se impõe a todas as esferas da existência humana.  Os consumidores dos produtos e das formas de bem estar social se prendem a uma escravidão suave e democrática.  Como Adorno e Horkheimer (1978) avaliaram, o mal não deriva da racionalização do nosso mundo, mas da irracionalidade com que essa racionalização atua. Os bens da civilização que nos horrorizam são os instrumentos de destruição, já os bens criados pela superprodução, iludem os homens com sua engrenagem publicitária, tanto mais inútil quanto mais engenhosamente refinada ela se torna.

Na medida em que a realidade se tornou a forma universal da mercadoria, a liberdade do indivíduo foi mutilada. Hoje, todos, independentemente de sua classe social, compartilham de uma mesma experiência, são prisioneiros da dialética entre produtividade e destruição, dominação e progresso, prazer e infelicidade. Essa experiência danificada foi ilustrada por Adorno e Horkheimer na figura de Ulisses, o grande senhor de terra, que tinha milhares de trabalhadores ao seu dispor.

Ulisses representa na Dialética do esclarecimento a proto-história da subjetividade moderna, que procura afirmar seu eu no mundo, na luta contra as forças míticas da natureza. Como observa Gagnebin (1993, p. 73), “Ulisses é a descrição desse caminho penoso que rejeita a assimilação simbiótica mimética com a natureza para forjar um sujeito que se constitui mediante o trabalho e se torna, nesse processo, consciente de si na sua diferença radical, na sua separação do outro”. Nesse sentido, Ulisses é a imagem e a semelhança do homem moderno, que a partir da coordenação racional da ação, procura superar as forças míticas-naturais, transformando seu comportamento em ações conscientes.  Como observa Adorno e Horkheimer (1985, p. 49): “A viagem errante de Tróia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por um eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza e que só vem a se formar na consciência de si”.

Essa luta de Ulisses contra as forças míticas da natureza tem por corolário o sacrifício da sua própria felicidade. Ao lutar por sua conservação, ele foi obrigado a exercer uma dominação sobre sua natureza interna, reprimindo seus desejos e impulsos. É a partir da astúcia de sua razão que ele afirma sua própria identidade. A história de Ulisses é a história da humanidade que aprendeu a renunciar. O indivíduo que em seu sacrifício se adapta à civilização experimenta inexoravelmente a infelicidade para manter seu próprio eu: “O domínio do homem sobre si mesmo, em que se funda o seu ser, é sempre a destruição virtual do sujeito a serviço do qual ele ocorre; pois a substância dominada, oprimida e dissolvida pela autoconservação, nada mais é senão o ser vivo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 54).

Já no primeiro capítulo da Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer analisam a passagem das sereias como uma alegoria sobre a renúncia da liberdade e da felicidade humana. Nessa alegoria se entrelaçam mito, dominação e trabalho. Ulisses para ouvir o canto das sereias ordena a seus homens que o amarrem a um mastro e tapem os ouvidos para que se mantenham vivos e diligentes, e que não cedam a seus apelos.  O canto é tão poderoso que qualquer um que ouvir pode sucumbir à sua beleza. Nessa alegoria, os homens da tripulação representam os trabalhadores na linha de produção, que devem manter sua diligência e sacrificar sua liberdade para preservar suas vidas. Já Ulisses, o grande senhor de terras, que possui muitos empregados a seu serviço, representa o homem burguês, que apesar de poder fruir da cultura, está preso e subjugado pelos seus negócios, recusando a felicidade individual para manter o seu poder.

O que a alegoria procura mostrar de forma contundente é a renúncia do homem moderno de sua própria felicidade. O indivíduo é mutilado em sua própria essência, uma vez que sua liberdade é subtraída. Desse modo, a renúncia não é apenas do trabalhador, que está preso a labuta do dia a dia, em busca de sua autopreservação; mas é também do capitalista, que não precisa se sacrificar em um trabalho árduo na linha de produção.  Se o trabalhador não pode usufruir do seu trabalho, pois este surge como coação, o burguês também não pode se abandonar à fruição e ao esquecimento, uma vez que é obrigado a renunciar em benefício de seus negócios. Como Adorno e Horkheimer (1985, p. 39) mostram nessa passagem: “[Ulisses] escuta, mas amarrado e impotente ao mastro, e quanto maior se torna a sedução, tanto mais fortemente ele se deixa atar, exatamente como, muito depois, os burgueses, que recusavam a si mesmos a felicidade com tanto maior obstinação quanto mais acessível ela se tornava com o aumento de seu poderio”.

Apesar de Ulisses poder usufruir do canto das sereias, ele não podia ceder aos seus encantos. Para os poderosos, a cultura continuava sendo um privilégio, mas suas promessas não poderiam se realizar no plano da existência material dos indivíduos. A cultura sempre foi compreendida na Europa dos séculos XVIII e XIX como o entrelaçamento entre o mundo espiritual com o processo histórico material da sociedade. Ou seja, o entrelaçamento entre o mundo físico e o mundo simbólico. Contudo, a classe burguesa para conseguir um domínio progressivo sobre a classe trabalhadora separou essas duas esferas. As ideias de felicidade, realização, igualdade, liberdade e justiça social somente foram aceitos no plano da arte e da cultura espiritual burguesas, não sendo realizadas no plano material da sociedade. Assim, a cultura se tornou ideológica. Foi o que Marcuse denominou de cultura afirmativa, ou seja, aquela cultura pertencente à época burguesa que no curso de seu próprio desenvolvimento levaria a distinguir e elevar o mundo espiritual anímico, nos termos de uma esfera de valores autônomos, em relação à civilização. Seu traço decisivo é a afirmação de um mundo mais valioso, eternamente melhor, que é essencialmente diferente do mundo do fato da luta diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar para si a partir do interior, sem transformar aquela realidade de fato. (MARCUSE, 1997).

Se a cultura é o mundo do bom, do belo e das promessas de felicidade, o mundo das relações reificadas é o mundo da opressão e da infelicidade. Guerras, genocídios, desemprego, fome, miséria e criminalidade são partes da experiência do indivíduo moderno. Nesse sentido, o homem para sobreviver reproduz o mesmo medo do homem primitivo das forças da natureza, mas agora ele teme as forças irracionais e opressivas da realidade social. Com isso, o indivíduo mimetiza a realidade procurando se adaptar a ela. O medo da fome, da miséria e da exclusão social levam-no a imitar as formas de comportamento e conduta socialmente estabelecidos: “Através da repetição e imitação das circunstâncias que o rodeiam, da adaptação a todos os grupos poderosos a que eventualmente pertença, da transformação de si mesmo de um ser humano em um membro da organização, do sacrifício de suas potencialidades em proveito da capacidade de adaptar-se e conquistar influência em tais organizações, ele consegue sobreviver. A sua sobrevivência se cumpre pelo mais antigo dos meios biológicos de sobrevivência, isto é, o mimetismo” (HORKHEIMER, 2002, p. 146).

Se o homem comum mimetiza a realidade para poder se adequar, o capitalista não precisa mais se ocupar da vida, ele só tem experiência dela como substrato, pois se deixa corromper integralmente no eu que comanda. Como observa Duarte (1997), o resultado disso é a formação de um sujeito que se submete a ditadura da conservação, e seu correlato, é a impossibilidade de toda humanidade se tornar sujeito de suas ações, de seu futuro, do seu destino, fato que Adorno e Horkheimer descrevem em termos de uma espécie de menoridade do gênero humano.  Enquanto a sociedade capitalista perpetuar a dominação com o amparo da técnica e do capital, enquanto a existência dos indivíduos se restringir ao domínio da forma mercadoria, perpetuando eternamente a miséria da sociedade de classes, nessa medida o bom, belo e verdadeiro só podem ser usufruídos na arte e na cultura espiritual burguesas. Desse modo, a infelicidade deve permanecer como a condição existencial do homem moderno.

Michel Aires de Souza Dias – Doutorando em educação pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] 

Referências

ADORNO, Theodor Wiesengrund e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

ADORNO, Theodor Wiesengrund e HORKHEIMER, Max. Família. In: ADORNO, Theodor Wiesengrund e HORKHEIMER, Max. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, 1978.  p.132-150.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter.  Obras Escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

DUARTE, Rodrigo. Notas sobre modernidade e sujeito na Dialética do Esclarecimento. In: DUARTE, Rodrigo. Adorno: nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1997, p. 45-63.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin.  Perspectivas: Revista de Ciências Sociais/UNESP, São Paulo, v. 16, p. 67-86, 1993.

HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro, 2002.

MARCUSE, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In: Cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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