Um luzia no poder, por Maria Cristina Fernandes

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Jornal GGN – Luzias e saquaremas, liberais e conservadores. A denominação foi dada no Segundo Reinado, com D. Pedro II declarado maior e tendo prestado juramento. Saquarema era como se tratavam os conservadores, por conta de município com mesmo nome onde morava um dos seus líderes, o Visconde de Itaboraí. Luzia era a denominação dos liberais, uma alusão à vila de Santa Luzia, em Minas Gerais, onde ocorreu a maior derrota nas revoltas de 1842. Dizia-se, então, “Nada mais parecido com um Saquarema do que um Luzia no poder”.

Os Saquaremas, conservadores, pregavam um sistema político onde as autoridades governamentais deveriam garantir a liberdade de todos os cidadãos, com imparcialidade. Os liberais, os tais Luzias, pregavam a liberaçãodas províncias, com um governo parlamentar mais aprimorado e a abdicação do poder moderador, além de quererem a abolição da escravatura e a eleição bienal dos deputados. 

Os dois partidos não se respeitavam e muito menos se impunham à opinião pública, cada um com seu órgão de imprensa com a qual atacava o adversário. Eles chegaram ao apogeu de sua fama no 2º Reinado, com o Imperador mantendo-se neutro entre eles e aconselhando a conciliação.

Pois bem, contextualização feita, Maria Cristina Fernandes, em seu artigo semanal no Valor, traz os luzias e saquaremas se alternando no formato atual de poder, na mão do interino que talvez se torno titular, mesmo sem votos, Michel Temer. A autora pontua os ditos, desditos e feitos de cada aba do poder, se alternando entre liberal e conservador, meio déspota meio protetor. Leia o artigo a seguir.

do Valor

Um luzia no poder

Por Maria Cristina Fernandes

“Bom dia, o que o senhor faz?”

“Sou agente administrativo”

“Com que função?”

“Cuido de empenhos da subseção de esporte amador para a regional oeste”

“O que o senhor empenhou hoje?”

“Nada”

“E esta semana?”

“Nada também”

“E no mês?”

“Deixe eu falar uma coisa para o senhor. Estamos com um decreto de contigenciamento e não podemos fazer empenhos. Mas no início do ano empenhei duas bolas de basquete e uma rede”.

O diálogo, hipotético, foi reproduzido pelo governador de um grande Estado a um empresário que o visitou recentemente. Ao explicar a penúria de seu cofre, sugeriu que visitasse uma repartição pública de sua administração para entender por que. Qualquer uma.

Na Secretaria de Educação encontraria, distribuídas em 64 folhas de pagamento, 80 mil funcionários, sendo 20 mil sem trabalhar. Destes, 3 mil usufruem de licença médica e os outros 17 mil entraram com pedido de contagem de tempo para aposentadoria. Enquanto o Executivo verifica se o pedido é devido – processo que pode chegar a um ano – o servidor fica em casa e recebe salário.

Aqueles servidores estão na base da pirâmide do serviço público, com o salário equivalente a 1/30 do que ganha um desembargador, sem benefícios. Antes dos recentes aumentos para a elite do funcionalismo, o economista Ricardo Paes de Barros calculara que o patamar de desigualdade no setor público é duas vezes maior do que o do setor privado.

Nenhum deles pode ser demitido. Somados, os salários de todos eles, as aposentadorias – para cada coronel da PM na ativa, com salários vinculados ao teto do funcionalismo, há 40 inativos -, as vinculações constitucionais e a amortização das dívidas comprometem 94% das receitas do Estado.

Este governador se considera, assim como a seus pares, prisioneiro das corporações. Nenhum deles, no entanto, tem se mobilizado para enfrentá-las nos embates do Congresso em torno do ajuste fiscal. Descreem da capacidade de o presidente interino galvanizar o apoio para dobrar os parlamentares.

Não se aposta que a confirmação no cargo mude o cenário. Em grande parte porque Michel Temer, ao confirmar o reajuste prometido pela administração anterior ao topo da pirâmide funcional, que desceu, em cascata, para os Estados, perdeu a capacidade de liderar esse ajuste.

As autoridades econômicas continuarão a jogar nas costas do Congresso a responsabilidade pela ausência de reformas porque não podem atribuí-la a quem os nomeou. Não há razão para um parlamentar apoiar uma medida impopular, no entanto, se nem o presidente nem o governador de seu Estado se dispõem a queimar caravelas em sua defesa.

Temer terá dificuldades em rejeitar a pressão de Estados não beneficiados pelo acordo das dívidas por mais uma concessão. O repasse que reivindicam no Fundo de Participação dos Estados equivale a um décimo daquilo que custará o reajuste da casta do funcionalismo.

Na semana passada, o presidente que está por ser efetivado no cargo escreveu um artigo (“Estado de S.Paulo”, 09/08) em que desfez, de uma vez por todas, as ilusões de quem pudesse vir a tê-lo por reformista. No texto, publicado no auge da polêmica sobre o recuo do governo no ajuste fiscal, Temer contrapõe seu apego à democracia à vocação centralizadora e autoritária da política nacional.

Valendo-se de sua cultura constitucionalista, o presidente cita cláusulas da Carta que preservam a separação dos Poderes e a federação. São tão constitucionais quanto aquelas que preveem como objetivo da República a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais, omitidas em seu artigo.

Revelou-se, sem se valer do termo, um luzia diante de uma cobrança saquarema pela liderança do governo central. Luzias e saquaremas lideraram os embates do Império. Nomeados a partir de cidades polos de seus correligionários, Santa Luzia (MG) e Saquarema (RJ), simbolizaram as visões de Brasil que, por muito tempo, atravessaram fronteiras partidárias e regionais. Os primeiros, a reivindicar autonomia federativa em nome da sociedade civil e os segundos, a proclamar um Estado forte e civilizatório capaz de enfrentar elites rurais desprovidas de virtudes públicas.

Saquaremas reprimiram violentamente rebeliões locais, mas lideraram a abolição. Luzias sempre invocaram o progresso econômico contra o despotismo do Estado, mas nunca abriram mão dos canais privilegiados do poder. Com sinais e ideias trocados, revezaram-se na liderança do atraso que não impediu o Brasil de atravessar o Império e desembarcar no século XX.

A Lei de Responsabilidade Fiscal, o Bolsa Família e o Mais Médicos foram flertes saquaremas dos governos Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Também foi com o arroubo de um saquarema que Michel Temer propôs a PEC dos gastos, mas é com lábia de um luzia que administra sua desidratação.

O fortalecimento do Judiciário e do Ministério Público é uma ideia luzia, tanto pelo empoderamento da sociedade civil quanto pela força que as corporações detêm na estrutura burocrática para manter privilégios e desigualdades. Governadores não têm como se insurgir contra um e outro, não apenas porque ambos são, em grande parte, garantidos pela Constituição, mas também porque os Tribunais de Justiça concentram centenas de ações que quebrariam o cofre de muitos Estados.

A Lava-Jato agravou o desequilíbrio dos Poderes porque aumentou a condição de refém dos governadores. São as Assembleias Legislativas que autorizam o Superior Tribunal de Justiça a processar governadores. É preciso que estes sejam dotados de insuperável vocação suicida para aderir a reformas que limitem os gastos dos legislativos estaduais.

O corporativismo quer se valer de um luzia no poder para sacramentar o drible que, há 16 anos, tem sido dado na Lei de Responsabilidade Fiscal. Não parece coincidência que o Congresso, com a armadilha que começa a preparar para as leis anticorrupção, possa contornar alguns avanços civilizatórios produzidos por carreiras do Judiciário. É apenas a pior das combinações, nesta longa jornada de luzias e saquaremas, que o controle do Estado se revele caro e de pouca serventia.

Maria Cristina Fernandes é jornalista do “Valor”. Escreve às quintas-feiras

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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