Uma nova versão do industrialismo periférico em meio à pandemia, por Antônio Carlos Diegues

Uma nova versão do industrialismo periférico em meio à pandemia

por Antônio Carlos Diegues

Os devastadores impactos da pandemia de Covid19 na sociedade e na economia internacional reacenderam um debate já latente há alguns anos sobre a importância da indústria para o desenvolvimento. Ainda que de maneira difusa, tal questão aos poucos foi recuperando espaço na mídia especializada internacional desde a crise de 2008 e do deslocamento das atividades manufatureiras de países como os Estados Unidos em direção à ‘fábrica asiática’ (liderada pela China). Com a eleição de Donald Trump, o acirramento das guerras comercial e tecnológica com a China levou o debate para outro patamar: de maneira geral estava cada vez mais claro aos formuladores de política norte-americanos a importância da reindustrialização para o crescimento da produtividade, da renda e da geração de empregos bem remunerados em seu país.

Não bastassem estas inúmeras tensões, a escalada da pandemia de Covid19 e a conseguinte incapacidade das indústrias nacionais de produzirem os insumos e equipamentos médico-hospitalares necessários alçou o debate global sobre a desindustrialização e a dependência de manufaturas importadas para outro patamar.

Como era de se esperar, ainda que tardiamente, tal preocupação reverberou no Brasil. Aqui, de maneira ainda mais intensa e precoce do que se observou em países de elevada renda per capita, observou-se nas últimas décadas um intenso processo de desadensamento produtivo. Tal fato, somado às limitações características de um país não desenvolvido, dificulta ainda mais a urgente necessidade de se prover os insumos e equipamentos médico-hospitalares necessários para se amenizar as mazelas da pandemia.

Apesar do cenário atual desnudar as fragilidades do parque manufatureiro local, as limitações da contribuição da indústria brasileira ao desenvolvimento têm raízes estruturais. Mais do que isso, tais limitações parecem ser cada vez mais independentes dos ciclos econômicos. Assim, ao se analisar o comportamento da indústria tanto no período de aceleração do crescimento na primeira década de 2000 quanto na posterior desaceleração e reversão do crescimento entre 2011 e 2015, observa-se sua incapacidade de combinar simultaneamente três elementos centrais para quaisquer estratégias de desenvolvimento sustentáveis a longo prazo: aumento da produtividade e da remuneração média, além da sofisticação das exportações em relação às importações.

O fato dessa essa incapacidade estar presente mesmo em períodos de relativa pujança econômica somado à permanente tendência de desadensamento produtivo vigente desde os anos 80, sugerem a consolidação de um padrão de organização estrutural que pode ser entendido como uma nova versão do industrialismo periférico. Nova principalmente porque, ao contrário do industrialismo periférico vigente entre 1930-1980, o padrão atual seria caracterizado por uma permanente especialização regressiva e não pelo avanço da diversificação como no período anterior, ainda que esta tenha sido dependente financeira e tecnologicamente.

Essa nova versão do industrialismo periférico (e agora regressivo) seria caracterizada por uma nova forma de complementaridade ao capital produtivo internacional, viabilizada por meio da integração importadora nas cadeias globais de valor e pela realização cada vez mais de atividades basicamente de tropicalização e adaptação ao mercado doméstico destes produtos importados. Ou seja, por uma maquila introvertida. Em paralelo, a atuação da indústria brasileira estaria cada vez mais vinculada à representação local (comercial, financeira e de marketing) do capital produtivo internacional.

Como forma de potencializar a competitividade e a acumulação desta nova versão do industrialismo periférico, a estratégia dos agentes locais estaria cada vez mais concentrada em reações defensivas, com pressões permanentes para reduções de custos produtivos e não via aumento da inovação tecnológica e da produtividade. Dentre os pilares dessa forma de organização se destaca a necessidade contínua de redução de custos via pressões para incentivos tributários e fiscais, além de flexibilização e redução substancial dos custos trabalhistas.

Por fim, a nova versão do industrialismo periférico traria consigo o exacerbamento da tendência de especialização da indústria brasileira em setores que apresentam vantagens comparativas associadas à extração e processamento de recursos naturais e naqueles em que a proximidade ao mercado doméstico é importante elemento para a competição.

São exatamente estas características estruturais que, agora amplificadas pela crise do Covid19, trazem à tona os limites da contribuição da indústria brasileira não só no momento atual, mas também como elemento central para a sustentabilidade de uma estratégia virtuosa de desenvolvimento econômico. Como contorna-las exige, portanto, uma compreensão mais perspicaz do desenrolar do já efervescente debate econômico internacional, e que certamente escalará para outro patamar tão logo fiquem claros os efeitos de longo prazo da pandemia.

Prof. Dr. Antônio Carlos Diegues – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, Coordenador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia, diegues@unicamp.br.

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