Uma Páscoa com Lula, por Jorge Alexandre Neves

A volta de Lula à arena política e eleitoral resgata em muitos brasileiros a esperança de retorno à construção do processo civilizatório vislumbrado com a CF-88.

Uma Páscoa com Lula

por Jorge Alexandre Neves

Embora eu não seja hoje um homem religioso, minha formação dentro de uma família profundamente católica de franciscanos seculares e em um colégio – no qual passei minha vida escolar inteira – de freiras beneditinas missionárias, naquele momento, fortemente influenciadas pela Teologia da Libertação, marcou toda a minha vida e me levou a ter uma grande admiração pelo humanismo cristão. Dentro desse contexto, a Páscoa era o ponto alto do ano, trazendo reflexões sobre transformação e libertação.

Acabamos de encerrar a quaresma mais dura da vida de muitas gerações. Para quem vive os períodos religiosos – particularmente católicos – do ano, com certeza esta quaresma permitiu reflexões bastante profundas sobre o significado de uma época de sacrifícios e abstenções. Todavia, em plena quaresma, algo novo ocorreu e que traz muitos brasileiros à Páscoa com um sentimento de uma nova transformação, de que algo poderá, finalmente, mudar para melhor, com a volta do ex-presidente Lula ao cenário político e eleitoral. Lula, quando presidente, elevou a autoestima dos brasileiros a um patamar inédito. Sua volta à arena política pode resgatar esse sentimento de autoestima e alegria.

Em uma crônica na extinta revista Manchete, antes do início da Copa do Mundo de Futebol de 1958, Nelson Rodrigues cunhou o termo “complexo de vira-latas” para definir o que chamou de “a inferioridade que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Para ele, esse complexo era fundamentalmente mais forte e visível no futebol, desde a dramática derrota brasileira frente ao Uruguai, em pleno Maracanã, no ano de 1950. Ele já previa uma ruptura desse complexo com o escrete canarinho de 1958. De fato, o Brasil venceu a Copa de 1958 na Suécia de forma brilhante. Pela primeira vez uma seleção nacional de futebol de um país fundamentalmente multirracial vencia a Copa do Mundo, tendo, adicionalmente, três jogadores negros (dois pretos, Pelé e Didi, e um pardo, Garrincha) como seus principais destaques. Finalmente, o futebol dionisíaco associado ao multirracialismo brasileiro superava o padrão apolíneo dos brancos de origem europeia (para utilizar termos emprestados de Gilberto Freyre). Portanto, para a alegria de Nelson Rodrigues, em 1958 o Brasil supera o “complexo de vira-latas” no futebol.

Cinquenta anos depois de ter superado o “complexo de vira-latas” no futebol, finalmente o Brasil veio a superá-lo na política. Durante todo o primeiro mandato e a primeira metade do segundo mandato do Presidente Lula, o indiscutível sucesso do seu governo era atribuído, por muitos, à sorte. Todavia, com a eclosão da maior crise econômica do capitalismo mundial desde a terrível depressão iniciada em 1929, o então Presidente Lula estaria, finalmente, diante de um grande desafio. Naquele momento, muitos previram o colapso da economia brasileira, que resultaria da incapacidade do governo de plantão. Ocorreu, contudo, que, em seu pronunciamento à nação em 22 de dezembro de 2008, o então Presidente Lula chamou o povo brasileiro a aderir ao seu otimismo e a acreditar que o país estava com total condição de manter seu crescimento econômico e seus programas de redução da pobreza e da desigualdade. Não havia razão para entrar em pânico nem de desistir dos projetos de investimento ou de consumo. Os brasileiros acreditaram no compromisso apresentado por seu presidente e mantiveram seus planos. Aquele dia foi simbólico, pois, a partir dele, com as ações implementadas pelo governo durante todo o ano seguinte, passou a ser absolutamente implausível a crença de que a indiscutível melhora dos principais indicadores socioeconômicos brasileiros, alcançada pelas políticas propostas pela administração do então Presidente Lula, fosse apenas consequência da mais pura sorte.

Do final do século XIX até a terceira década do século XX, predominava no pensamento social brasileiro uma auto avaliação do Brasil que, em muito, assemelhava-se à definição do “complexo de vira-latas” cunhado por Nelson Rodrigues. O livro de Paulo Prado, “Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira”, de 1928, foi representante típico dessa corrente. Curiosamente, apenas cinco anos depois, é publicada a mais famosa obra de Gilberto Freyre, “Casa-grande & Senzala”, marco do início de um período de superação que se sucedeu dessa auto avaliação pessimista sobre o Brasil e o seu povo. Embora Gilberto Freyre tenha deixado um legado pernicioso com a chamada “democracia racial”, um outro mito – assim como o da inferioridade advinda da multirracialidade – que perdurou por décadas até ser enfrentada pelas políticas públicas recentemente, ele teve o mérito de romper com a visão de inferioridade racial. Portanto, no pensamento social, a superação do “complexo de vira-latas” teve início em momento bem anterior à proposição do termo por Nelson Rodrigues. 

O Presidente Lula foi o primeiro estadista brasileiro sem qualquer ligação com as “Elites dos Bacharéis”. Sua formação política se deu no movimento sindical. Sua origem familiar remonta à dos mais pobres entre os brasileiros, os retirantes oriundos das áreas rurais do semiárido nordestino. A partir daquele final do ano de 2008, 50 anos após a superação do “complexo de vira-latas” no futebol, enfim a população brasileira de modo geral (incluída partes das elites econômicas e intelectuais) reconhecia de forma inconteste a liderança de um político realmente identificável como um típico “homem do povo”. Finalmente, a nação podia superar o “complexo de vira-latas” na política.

A volta de Lula à arena política e eleitoral resgata em muitos brasileiros a esperança de retorno à construção do processo civilizatório vislumbrado com a CF-88. Como um homem com raízes genuinamente populares, ninguém melhor do que Lula para trazer toda a energia da sociedade brasileira de volta ao centro do poder político nacional e refazer o pacto social rompido com o golpe estamental de 2016. Afinal, um sentimento autêntico e profundo de Páscoa, de uma transformação que nos levará de volta à construção de um projeto humanista. Finalmente, muitos de nós começamos a vislumbrar a saída de um deserto de sofrimento feito de pobreza crescente, desigualdade indecente e pandemia renitente.

Redação

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