Os caminhos da métis na era pós-Snowden

Em virtude das denúncias de Snowden, ficamos sabendo que Facebook, Microsoft e Google forneceram e fornecem a NSA dados dos seus usuários ou condições para obtê-los sem a autorização dos mesmos. Bilhões de pessoas, milhões de empresas e centenas de governantes transformaram-se em objetos de investigação dos analistas norte-americanos que, a propósito de cumprir a Lei de seu país, desrespeitam de maneira acintosa as Leis Internacionais que garantem a privacidade dos seres humanos e a soberania dos Estados-membros da ONU. A desculpa oficial do governo dos EUA para a espionagem massiva é absolutamente ridícula, pois há mais de uma década os verdadeiros terroristas abandonaram a internet porque sabem que os agentes de segurança norte-americanos (e de outros países) usam a web para infiltrar-se em organizações terroristas e criminosas, a fim de combater e prevenir a ocorrência de crimes. A NSA, que tem ajudado o governo norte-americano a se posicionar diante de governos aliados e concorrentes mediante a espionagem das comunicações de governantes legítimos, está no centro maior conflito diplomático das últimas décadas no novo cenário mundial se descortinará durante e depois da discussão do Projeto de Resolução conjunto apresentado na ONU por Alemanha e Brasil.

E nós, meros mortais, como devemos nos conduzir neste momento? As respostas a esta pergunta depende obviamente de como encaramos as violações de nossos direitos e de que maneira usamos ou pretendemos suar a internet. No passado, quem navegava na internet tinha que tomar cuidado com os hackers e aprender a atribuir credibilidade a cada informação que acessava. O oceano da internet não tem um mapa, nele nem todos os pontos de referência são certos e quase sempre todos remetem ou podem remeter a outros pontos de referência ambíguos. O resultado quase sempre é a incerteza: o que parece informação legítima, pode muitas vezes ser apenas propaganda ou uma mentira bem contada.

Num passado distante, as religiões que enfatizam a moralidade forneciam à esmagadora maioria das pessoas os caminhos que elas poderiam trilhar e quais deveriam evitar. Atualmente, entretanto, as religiões do Livro (judaísmo, cristianismo e islamismo) não fornecem nada que possa se comparar à mitologia antiga no que se refere à atividade de navegar em segurança na internet. Para os cristãos (falarei basicamente deles, porque no Brasil o judaísmo e o islamismo tem uma quantidade ínfima de adeptos), ou as pessoas já encontraram a graça e foram salvas mediante o sacrifício do Cordeiro de Deus (e, portanto, não podem ou não precisam retornar à situação pretérita), ou ainda não encontraram a graça (e devem persegui-la como bons cristãos ou ficarão perdidos, como os infiéis), ou ainda, nunca poderão encontrá-la aqui e agora (o reino de Deus está entre nós mas não é ou não pode ser visto). Tentei resumir aqui as principais correntes do cristianismo para demonstrar que em nossa civilização ocidental contemporânea e cristã a questão da viagem não é tratada como deveria – daí, alguns viajantes virtuais simplesmente não conseguirem voltar. Foi isto o que ocorreu, por exemplo, com aqueles que decidiram criar um império virtual e o explorar à revelia dos outros países, ignorando ou deliberadamente descumprindo a Lei Internacional e, principalmente, desumanizando bilhões de seres humanos e centenas de governantes que, longe de serem simpáticos ao terrorismo, muito provavelmente nunca se envolveriam com a violência política.

Em nossa civilização os caminhos estão fechados porque as teologias morais não são abertas. O fundamentalismo cristão, que cresce de maneira assustadora nos EUA, está na origem desta bolha orwelliana explodida por Snowden. Os líderes político-religiosos ligados ao Partido Republicano apoiaram a criação dos bancos de dados da NSA. Neste momento ao contrário de fazerem uma autocrítica, eles preferem exigir a prisão de Snowden (alguns exigem até mesmo a morte do analista exilado na Rússia). A viagem que estas pessoas fizeram ao âmago do mundo virtual é marcada pela intolerância, pela ambição de poder e, sobretudo pelo desesperado desejo de controlar tudo e todos o tempo inteiro como se os outros fossem perigosos ou inferiores ou indignos de direito à privacidade.

O que falta a estes norte-americanos não é fervor religioso e sim métis (palavra aqui usada aqui no sentido grego) que lhes permita ir e voltar com segurança nas suas viagens cibernéticas, psicológicas ou políticas. A carência deste tipo de inteligência ou da valorização da mesma nos EUA, o desprezo que os fervorosos cristãos norte-americanos devotam por este tipo de sensibilidade intelectual, ainda vai nos obrigar a retornar ao ponto em que o cristianismo interrompeu e destruiu a cultura grega.

Entre os gregos métis era algo fundamental. Através da leitura e estudo das longas narrativas (Ilíada e Odisseia), o grego era estimulado prestar atenção aos caminhos que fazia, a aprender a reconhecer os pontos de referência que garantiam o sucesso da jornada, a estudar o terreno em que a jornada seria realizada e a conhecer bem o veículo que seria empregado. Nada poderia ser mais fundamental para uma sociedade de comerciantes que utilizava largamente o mar para empreender negócios e estabelecer contatos com os outros gregos e os outros povos.

Cada um dos deuses gregos tinha sua métis específica e, eventualmente, compartilhavam de alguma maneira as métis de outros deuses. Os mortais certamente nunca poderiam ter acesso à métisdivina, mas podiam mimetizá-la para suas próprias necessidades. Tanto é verdade que até os filósofos gregos se ocuparam deste tipo de inteligência:

Rapidez e precisão de golpe de vista: retendo estes dois conceitos para delimitar o caráter específico da métis, Aristóteles e Platão escolhem insistir sobre a natureza estocástica da inteligência prática e empreendem, assim, pôr em evidência o aspecto conjectural de um modo de conhecimento, cujo caminha já é desenhado pela cosmogonia de Álcman, com a configuração de Tétis, potência do espaço marinho, e de seus dois acólitos, Ponto de Referência e Trajeto, Tékmor e Póros. Com efeito, conjecturar, tekmaíresthai, significa, à maneira dos navegadores que confiam nos sinais dos videntes e nas marcas luminosas do céu, abrir-se um caminho, ajudando-se com pontos de referências, e conservar os olhos fixos no objetivo que a corrida quer atingir. A equivalência que os lexicógrafos estabelecem entre `ter um alvo´ (stokházesthai) e `conjecturar´ (tekmaíresthai) justifica-se com a representação explícita de um saber aproximativo, como de uma longa viagem através do deserto (éremos), lá onde os caminhos já não são traçados, ou, sem cessar, é preciso adivinhar a rota e visar a um ponto no horizonte longínquo. Este conhecimento oblíquo e manco é o que o Tratado da Natureza, escrito por Alcméon de Crotona no fim do século VI, deixa em partilha ao conjunto dos homens, por oposição à certeza de que gozam os deuses, tanto sobre as coisas invisíveis quanto sobre os negócios humanos” (Métis, as antigas astúcias da inteligência, Marcel Détienne e Jean-Pierre Vernant, Editora Odysseus, 2008 – p.280/281).

No país mais poderoso do planeta, a métis não existe. Os norte-americanos que comandam o Google e o Facebook não pediram aos seus usuários (ou aos governos deles) licença antes de facilitarem à NSA o acesso às informações privadas deles. Os programadores da Microsoft não se recusaram a criar portas nos fundos nos programas que seriam vendidos em outros países prevendo que isto poderia acarretar um imenso conflito diplomático entre os EUA e seus aliados tradicionais. O próprio governo dos EUA não teve a decência de comunicar aos seus parceiros e à comunidade internacional o que pretendia fazer. Muito pelo contrário, a Casa Branca agiu como se a Lei Internacional, que garante a soberania dos outros países e o sigilo da comunicação dos cidadãos de todos Estados membros da ONU, não existisse, não estivesse em vigor ou pudesse ser simplesmente ignorada.

Os norte-americanos que criaram o novo pesadelo orwelliano e que o apoiam certamente acreditam que Deus já lhes concedeu a graça, que eles não precisam fazer absolutamente nada para ser salvos ou, no limite, que tudo que eles fizeram, fazem ou farão será aprovado pela divindade. Isto explica, por exemplo, porque os EUA chegou ao absurdo de espionar até o Papa, como se o sorridente e inofensivo Francisco fosse uma espécie de Senhor da Guerra Medieval capaz de movimentar exércitos poderosos ad urbe et orbi. Todavia, esta estranha religião norte-americana que pretende nos obrigar (e que de fato já nos obrigou) a compartilhar todas as nossas informações com os analistas da NSA, que justifica as invasões realizadas nos computadores e até nos celulares dos governantes que nós elegemos, não vai conseguir interromper o curso da História.

Prova disto é que um único analista da NSA dotado de métis foi capaz transformar o sonho norte-americano de controle absoluto da internet numa oportunidade para sua verdadeira democratização. Tudo isto à revelia da Casa Branca e contra a vontade dos políticos e religiosos que apoiaram e apoiam a edificação do império virtual que começou a ser destroçado por Snowden. Apesar da esmagadora maioria das pessoas comuns que usam a internet não conhecer o suficiente de programação para poder se proteger do Leviatã virtual, milhões de pessoas aprenderam que a métis de um único especialista em computação foi capaz de mudar todo o cenário mundial. A tecnologia que produziu o universo do controle e a religião moral politizada que acreditava poder controlá-lo foram abaladas pelo imponderável, foram sobrepujadas por um tipo de inteligência que era muito valorizada pelos gregos (mas que infelizmente andava meio esquecida nos últimos tempos).

Oxalá a métis de Snowden acorde nossas próprias argúcias intelectuais. Pois assim, poderemos apoiar nossos governos contra o império virtual criado pelos EUA e, ao mesmo tempo, afogar os norte-americanos em informações irrelevantes impedindo-os de ter acesso ao que realmente interessa. A FSB orientou seus analistas a voltarem a usar máquinas de escrever. A métis dos russos, como se vê, ativou-se rapidamente. E a do governo brasileiro? Por quanto tempo o Brasil ainda permitirá que os espiões norte-americanos violem nossa privacidade, inclusive usando bases dentro do nosso território?

Fábio de Oliveira Ribeiro

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