Desastre de Brumadinho completa três anos com minério-dependência e danos recorrentes aos moradores

Mas parece que a tragédia foi superada por autoridades locais e pela Vale S.A., tendo em vista que o número de licenças para a atividade de novas mineradoras cresceu exponencialmente

por Camila Bezerra – Especial para o Jornal GGN

O rompimento da Barragem da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, completa três anos hoje, terça (25). Foram 270 vítimas fatais, oito ainda desaparecidas e um prejuízo ambiental sem precedentes, tendo em vista que os rejeitos da barragem atingiram o Rio Paraopeba, um dos afluentes do Rio São Francisco.

Mas parece que a tragédia foi superada por autoridades locais e pela Vale S.A., tendo em vista que o número de licenças para a atividade de novas mineradoras cresceu exponencialmente no último biênio. Em contrapartida, a população continua sofrendo uma série de prejuízos financeiros, físicos e emocionais, sem qualquer expectativa de reparação ou mesmo de volta à uma vida minimamente digna e segura.

As chuvas que atingiram grande parte do Estado nos primeiros dias do ano obrigaram a população de Brumadinho e cidades adjacentes a reviver a tragédia. De acordo com um balanço da Defesa Civil de Minas Gerais, 402 dos 853 municípios mineiros estão em situação de emergência. Apenas nos oito primeiros dias do ano, o volume de chuva que atingiu Belo Horizonte foi o esperado para todo o mês.

Mas para os moradores do entorno do Rio Paraopeba, a situação foi ainda mais caótica. Além das enchentes, a população foi exposta novamente à lama tóxica dos dejetos da barragem rompida, o que causou perda de móveis e utensílios domésticos, problemas de saúde e o estresse de viver em um cenário que pode se repetir com uma frequência cada vez maior.

Falta de esperança

Moradora de Mário Campos, cidade localizada a 16,6 quilômetros da barragem, Ângela Souza* conta que a mudança de Belo Horizonte, onde residia anteriormente, para as margens do Rio Paraopeba foi uma escolha pensada para dar mais qualidade de vida para as filhas de 6 e 11 anos. “Busquei um refúgio. Queria levar as crianças para brincar e pescar na beira do rio, mas isso nós já não temos desde o rompimento da barragem”, conta.

No dia em que a barragem se rompeu, Ângela e família receberam um aviso da Defesa Civil para deixar o imóvel, ordem que cumpriram durante três dias. Ao voltar para casa, contabilizaram os prejuízos. Foram cerca de R$ 5 mil perdidos em móveis danificados pelos dejetos da mineradora. Mas na ocasião, como foi avisada previamente, a família conseguiu salvar alguns móveis e utensílios.

Desta vez, não houve aviso. A moradora estima mais de R$ 20 mil em danos, entre móveis danificados, roupas, brinquedos e utensílios que tiveram de ser jogados no lixo. O guarda-roupa das crianças, por exemplo, foi comprado há apenas quatro meses e Ângela ainda tem parcelas para pagar. “Perdi todos os brinquedos das minhas filhas. Hoje elas só têm uma boneca que ganharam de doação”, relata a moradora emocionada.

Ângela conta ainda que tentou ressarcimento da Vale, mas a empresa negou o pedido de indenização alegando que os moradores de Mário Campos não foram atingidos pelos dejetos do Córrego do Feijão – a casa dela fica a 98 metros das margens do Rio Paraopeba, que além de contaminado, também passa por um processo de assoreamento, o que favorece ainda mais as cheias. “E agora a gente está convivendo com a lama. Estou com lama no quintal e na frente da minha casa. Os vizinhos estão com lama dentro de casa. Temos crianças pequenas e somos obrigados a ficar expostos a isso tudo porque é o local que temos para morar”, continua.

Assim, a moradora relata ainda que teme novas inundações e acredita que a exposição à lama contaminada e perda de móveis será recorrente. Uma das filhas vive à base de antialérgico, pois tem rinite, e depois de seca, a lama gera poeira, prejudicando o sistema respiratório da família e da população local.

A moradora também se sente impotente diante da situação. Sem condições de comprar um novo sofá, que está mofado desde a última inundação, ela o forra com um pano para que a família possa se sentar. E a casa agora tem um cheiro forte, que Ângela compara ao odor de um chiqueiro.

As inundações que atingiram a região do Paraopeba aumentaram ainda mais a falta de perspectiva de Eduardo Ferreira*. Morador de Santa Ana, bairro de Igarapé, Ferreira conta que o sítio da família era um ponto de encontro aos domingos, quando parentes e amigos se reuniam para nadar no córrego e comer carne assada.

Desde o rompimento do Córrego do Feijão, o imóvel passou de espaço de lazer a um engodo. “Acabou tudo. A gente tinha galinha e teve de vender. A gente tinha porco e teve de vender. Gado teve de vender. O poço de peixe foi infectado, tive de tirar os peixes antes. Não tenho nenhuma criação mais. Nem mesmo o que a gente plantava, como couve, uma cebolinha, coentro, que a gente comia e vendia para os vizinhos, até isso a gente perdeu. Com leite a gente fazia queijo. Agora o sítio está lá, ao Deus dará.”

Ferreira conta que morava com os pais no sítio, mas a exposição aos dejetos da Vale S.A. causou problemas de pele e respiratórios, principalmente no patriarca de 75 anos. “A coceira na pele é tão grande que a pele chega a se destacar de tanto que coça. Antes, meu pai não usava bombinha [de asma], agora ele usa”, continua o morador.

Quando cogitou a possibilidade de recuperar as atividades do sítio, a família foi exposta novamente à lama contaminada com a última inundação do Paraopeba. Vender o imóvel não é uma possibilidade, tendo em vista que o valor caiu de R$ 400 mil para R$ 200 mil e não há interessados na compra.

Indenização também não é uma alternativa. “A Vale nunca foi lá em casa para saber se a gente precisava de alguma coisa, de um remédio ou se estávamos nos alimentando. Por conta de 300 metros eles não me indenizaram. Disseram que as indenizações seriam concedidas apenas para os imóveis em um raio de mil metros”, emenda. 

Cautela

Entre as prefeituras da região, a responsabilização da Vale sobre a limpeza das cidades atingidas pela lama tóxica e a reparação de danos aos moradores ainda é um assunto tratado com cautela, já que o resultado das análises do material ainda não foi entregue. Em nota, a Secretaria de Comunicação da Prefeitura de Brumadinho afirma que “não pode se pronunciar sem que seja comprovada a presença de substâncias tóxicas ou advindas do rompimento da barragem. Caso positivo, as providências cabíveis serão tomadas”. A coleta das análises foi feita apenas em 18 de janeiro, conforme informação do site do município.

Já o Sistema Estadual do Meio Ambiente (Sisema) reconheceu a relação entre o rompimento da barragem em 2019 e as inundações recentes e intimou a Vale S.A. a limpar a lama de propriedades privadas e vias públicas, especialmente nas cidades de Brumadinho, Betim, São Joaquim de Bicas, Mário Campos e Esmeraldas. Mas não há, no documento, intimações relacionadas à compensação das perdas da população.

Até o momento, Brumadinho já teve de prestar auxílio a seis mil moradores, com a distribuição de cestas básicas, equipamentos de segurança e abrigos, nos quais 105 pessoas ainda estavam até o fechamento desta reportagem. Além de registrar estragos em toda parte, a administração municipal estima um prejuízo de R$ 15 milhões.

“Fenômeno natural”

Assim, em vez de responsabilização das mineradoras, o volume de chuva tem sido apontado como o grande causador de caos no Estado. Renato Anelli, professor doutor da Faculdade de Arquitetura da Mackenzie e pesquisador CNPq, explica que, de fato, fenômenos naturais contribuíram para a construção deste cenário caótico. “Com as mudanças climáticas, mais recentemente, começamos a ter um regime de chuva mais intenso. Aquelas chuvas que demoravam 100 anos, 50 anos para acontecer, agora acontecem anualmente e até mais de uma vez por ano”, observa.

O especialista aponta ainda que o volume de chuva em Minas Gerais neste começo de ano foi quatro vezes maior ao que costuma acontecer. Com maior volume de precipitações, ameaças de novos rompimentos de barragens e a negligência das mineradoras, moradores, pesquisadores e ambientalistas estão cada vez mais preocupados com a possibilidade de novos desastres. Em 10 de janeiro, por exemplo, a Prefeitura de Pará de Minas emitiu um alerta máximo de ameaça de rompimento da Barragem do Carioca.

Mas Dulce Maria Pereira, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (CEAD/UFOP) e pesquisadora em ecotecnologias e materiais para a redução do uso de recursos naturais, é categórica. “Não existe desastre natural, mas catástrofes promovidas pela ação humana”.

Lama contaminada

Contrária à justificativa de que o mar de lama que invadiu os municípios mineiros é um fenômeno natural, a professora Dulce Pereira garante que a lama é dejeto das mineradoras. “Essa lama não surgiu do rio, pois as margens não produzem esta quantidade absurda de lama. O que a gente tem ali, e te falo com toda a responsabilidade científica, não é simplesmente lama. É um material viscoso e que se torna uma forma de cerâmica. Tudo isso é uma lama que carreia dejetos e outros elementos que não são simplesmente argila, água e elementos do solo”, explica a pesquisadora.

Em Citrolândia, bairro de Betim, a situação também foi caótica. A prefeitura tirou 180 caminhões de lama e não limpou nem 5% do bairro, fato que revoltou o prefeito Vittorio Medioli (sem partido) e o levou a pedir, na imprensa, a responsabilização da Vale.

A Vale não é, no entanto, a única responsável pelos danos ambientais causados em Minas Gerais. No caso do Paraopeba, Dulce Pereira tem convicção de que a lama é resíduo da Barragem do Córrego do Feijão. Mas o Rio das Velhas, o maior afluente do Rio São Francisco, também está sendo degradado por outras companhias. “No caso do Rio das Velhas, a forma como a lama está nos rios, dá para saber o que vem da Vallourec. A partir do resultado das análises, como são várias mineradoras, é preciso entender de onde vem. A fonte de onde a lama saiu é que não está explicada”, conta a pesquisadora.

Assim como a Vale, a Vallourec também enfrenta ações judiciais. No último dia 8, a Mina do Pau Branco, em Nova Lima, teve as atividades suspensas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais após pedido do Ministério Público. Com as chuvas, a estrutura de contenção de água da barragem transbordou e interditou a BR-040, que liga a região metropolitana de Belo Horizonte ao Rio de Janeiro.

A decisão do juiz Sérgio Henrique Cordeiro Caldas Fernandes foi tomada a partir do entendimento de que a Vallourec tem a obrigação de assegurar a estabilidade e a segurança das barragens, evitando danos a terceiros.

Licenciamento simplificado

Em geral, grandes desastres servem como um parâmetro para que as medidas necessárias sejam tomadas, erros sejam corrigidos e processos sejam melhorados. Mas não é o que acontece em Minas Gerais. Apesar de ser palco de duas tragédias em menos de quatro anos (Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019), em vez de uma gestão com mais fiscalização e segurança no processo de licenciamento das mineradoras, o processo de liberação para a atividade está cada dia mais flexível.

Mesmo depois do rompimento da barragem em Brumadinho, a Vale não teve nenhum dos 25 projetos de alto risco negados pelo governo estadual entre 2017 e 2020. Uma das explicações para que isso aconteça está na Lei Estadual 21.972, de 21 de janeiro de 2016, no governo de Fernando Pimentel (PT). Além da criação da Superintendência de Projetos Prioritários (Suppri), que tem como objetivo agilizar o processo de liberação das atividades consideradas chave pelo governo, a lei também resultou em novos processos de licenciamento ambientais.

No Licenciamento Ambiental Trifásico, a empresa precisa de três licenças (Licença Prévia, Licença de Instalação e Licença de Operação), emitidas uma por vez, para dar início às atividades. Já no Licenciamento Ambiental Concomitante, os processos são analisados simultaneamente por um órgão ambiental competente. “Antigamente, o licenciamento era trifásico. Eram três fases, construídas para possibilitar uma avaliação técnica sobre a viabilidade ambiental dos empreendimentos que pudessem gerar uma visão de precaução, de prevenção de prejuízos”, explica Andréa Zhouri, professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do Grupo de Estudos em temáticas ambientais (Gesta).

A grande novidade originada pela nova legislação é o Licenciamento Ambiental Simplificado. Nesta modalidade, o processo é feito de forma eletrônica, em apenas uma fase, por meio de um cadastro ou do envio do Relatório Ambiental Simplificado. “A simplificação do licenciamento é parte importante  do desmanche ambiental, um retrocesso nos cuidados técnicos. O tempo de avaliação sobre cada etapa foi reduzido e instaurou-se uma prática de queimar etapas significativas da análise. Portanto, temos a transferência para as empresas da responsabilidade sobre o controle ambiental. É o Estado abrindo mão de seu compromisso constitucional de zelar pelo meio ambiente”, continua Andréa.

A consequência da flexibilização já pode ser contabilizada nos indicadores oficiais. De acordo com dados da Agência Nacional de Mineração, o número de licenças para a mineração aumenta desde 2017 e, entre 2020 e 2021, saltou de 594 para 825. Apenas em Minas, foram 103 autorizações concedidas no ano passado.

Assim como em Minas, o processo de desburocratização do licenciamento ambiental pode ganhar todo o País. As Comissões de Meio Ambiente (CMA) e a de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) já promoveram seis audiências públicas para discutir o Projeto de Lei (PL) 2.159/2021, que institui a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, e do novo marco da regularização fundiária (PL 2.633/2020 e PL 510/2021) e têm como compromisso votar estas pautas em 2022, de acordo com o site do Senado. “Estamos diante de governos anti-indígena, antiambientais e anti sociais. Com isso, temos estas estratégias de desmonte ambiental que favorecem o avanço de empreendimentos em áreas sensíveis do ponto de vista ambiental, social e étnico”, resume a professora da UFMG.

Minério-dependência

Outro fator que explica o desmonte ambiental em Minas Gerais é o financeiro. As cidades são altamente dependentes dos impostos arrecadados por mineradoras. Apenas o município de Mariana, com população estimada de 61.830 pessoas, arrecadou mais de R$ 674 milhões em impostos no ano passado, de acordo com o Portal da Transparência da cidade. Apenas para efeito de comparação, São Bernardo do Campo teve R$ 1,1 bilhão de receita. No entanto, a cidade da região metropolitana de São Paulo soma quase 850 mil habitantes.

As mineradoras também influenciam diretamente as decisões políticas do Legislativo mineiro. De acordo com o levantamento do jornal O Tempo, sete em cada 10 deputados estaduais eleitos em 2014 foram financiados por mineradoras, o que ajuda a explicar a aprovação da Lei  21.972, um ano depois do início do mandato. “Trata-se de uma gestão pública submissa aos interesses das mineradoras, já que a maioria de deputados é dependente e tem compromissos com elas”, critica Andréa.

Racismo ambiental

Mais que o complexo de minério do Paraopeba, a região de Brumadinho conta ainda com o Parque Estadual da Serra do Rola Moça, que representa um enorme potencial turístico. Foi este potencial que atraiu famílias produtoras de orgânicos e também empreendedores do setor do turismo. Além dos pequenos produtores, a região é habitada ainda pela Comunidade Indígena Pataxó Hã Hã Hãe e quatro quilombos: Sapé, Marinhos, Ribeirão e Rodrigues.

Mas na disputa entre a população e mineradoras, as vencedoras são sempre as empresas extratoras de minério – o que especialistas chamam de racismo ambiental, caracterizado pela retirada de direitos humanos de grupos nos territórios em que habitam. Assim, comunidades são vulnerabilizadas, deslocadas, expulsas e submetidas a condições insalubres. “O racismo ambiental opera como nunca. As mineradoras dialogam com as pessoas de maior poder aquisitivo e ignoram as pessoas que são consideradas ribeirinhas”, comenta a professora Dulce Pereira.

Andréa Zhouri vai além. Para ela, o racismo ambiental não se resume à marginalização de determinados grupos, mas é uma decisão governamental que adota a ideologia desenvolvimentista, mas que na prática só acentua desigualdades sociais. “A exposição da população ao risco não é natural. Está na base das decisões governamentais submeter certos grupos da sociedade a um volume maior de risco. O discurso político evoca a defesa do chamado desenvolvimento para justificar a submissão de alguns grupos sociais ao sacrifício, com a justificativa de que o sacrifício é para o bem do todo, para o benefício do Brasil”, conclui.

Resposta

Em nota, a Vallourec informa que está apurando os impactos ambientais causados pelo transbordamento do Dique Lisa, ocorrido em 8 de janeiro, em Nova Lima (MG) e  reitera que não houve rompimento de barragem ou do dique.

Procurada, a Vale S.A. não respondeu aos contatos da GGN.

*Os entrevistados tiveram os nomes trocados pela reportagem, pois a divulgação pode comprometer futuros processos indenizatórios.

Redação

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