Por Sara Costa* e Vitor Figueiras**
Com a crise associada à pandemia da Covid-19, dogmas do pensamento econômico ortodoxo passaram a ser confrontados por políticas públicas em diferentes partes do mundo. Em muitos países, o papel do Estado na dinâmica do crescimento, do nível de emprego e na proteção social tem destoado, ao menos por enquanto, da caricatura liberal que hegemonizou os debates nos últimos 40 anos.
Nos Estados Unidos, principal polo de difusão da retórica econômica liberal, adotam-se medidas para garantir alguma segurança material à sua população, e o Estado ganha protagonismo na definição de políticas ativas de crescimento do produto e do emprego. O Brasil, ao contrário, insiste e radicaliza a implementação de políticas públicas de “redução” do Estado e “flexibilização” do direito do trabalho, apresentadas, mais uma vez, como soluções para sair da crise.
Já em março do ano passado, nos Estados Unidos, foi implementado o CARES Act (Coronavirus Aid, Relief, and Economic Security), que efetuou transferências monetárias para as famílias e trabalhadores, em caráter temporário, com o intuito de conter a perda de rendimentos devido à pandemia[1]. No governo Biden, em março deste ano, o congresso promulgou o American Rescue Plan, responsável por aumentar o benefício para até 1.400 dólares por adulto. Além de estender para dependentes o pagamento, foram incluídos não apenas os menores de 17 anos, mas também adultos dependentes elegíveis. Mais uma vez, o benefício foi temporário e se restringiu a uma parcela.
Essa mesma legislação ampliou o Child Tax Credit, uma espécie de salário família por filho, aumentando o valor do benefício e expandindo-o para crianças menores de 18 anos[2]. Os contribuintes qualificados receberão parte do pagamento estimado para 2021 adiantado em parcelas mensais de 300 dólares por crianças de até 6 anos, e de 250 dólares por crianças menores de 18 anos. Assim, não precisarão esperar a declaração de impostos do próximo ano para receber o benefício[3]. Na mesma linha, o American Rescue Plan instituiu o Child and Dependent Care Credit, que pode reduzir os tributos abatendo o crédito para crianças e despesas com cuidados de dependentes na declaração de imposto de renda federal[4].
No campo da proteção contra o desemprego, o CARES Act introduziu dois programas principais de caráter temporário, estruturados para reagir à pandemia[5]. O programa de Assistência ao Desemprego Pandêmico (PUA) que oferece benefícios para indivíduos que trabalham por conta própria, procuram emprego por tempo parcial, ou que de outra forma não se qualificariam para compensação regular de desemprego. A Compensação de Desemprego Pandêmica (PEUC), por sua vez, inclui um bônus de 300 dólares fornecidos pelo governo federal, além dos benefícios sociais aos trabalhadores elegíveis à indenizações de desemprego.
O American Rescue Plan estendeu os benefícios do seguro-desemprego[6] implementados pelo CARES Act e sua elegibilidade até 6 de setembro deste ano. O American Rescue Plan também estendeu o PUA para trabalhadores autônomos e gig workers, automatizou pagamentos adicionais de 300 dólares por semana para todos os qualificados a benefícios de desemprego e promoveu uma extensão para pessoas que já recebem seguro-desemprego. A Primeira Lei das Famílias de Resposta ao Coronavírus (FFCRA), sancionada em março de 2020, exigia que os empregadores fornecessem licença remunerada para os trabalhadores adoecidos e afastamento do trabalho por necessidade familiar relacionada à Covid-19[7].
No que concerne às políticas habitacionais, a Assistência Emergencial aos Aluguéis (ERA)[8], política federal iniciada em dezembro de 2020 e estendida pelo American Rescue Plan para este ano, disponibiliza auxílio para qualquer inquilino que esteja com dificuldade financeira. O programa cobre os custos do aluguel, energia e serviços públicos – eletricidade, gás, óleo combustível, água e esgoto e remoção de lixo[9]. Na mesma linha, a Eviction moratorium impede o despejo dos locatários que não conseguiram manter o aluguel em dia durante o período pandêmico. A medida já foi estendida duas vezes este ano, permitindo aos estados mais tempo para alocar a verba do ERA[10].
Esse conjunto de medidas de proteção social tem sofrido muitas críticas das forças empresariais e, por conta da segurança social mínima que essas políticas engendram, tem ocorrido uma histeria para anunciar uma suposta crise de oferta de força de trabalho no país. Em um dos episódios mais sintomáticos, uma âncora da Fox News e o representante empresarial que ela entrevistava sugeriram, literalmente, que os trabalhadores deveriam passar fome para serem estimulados a trabalhar e serem obedientes, como os cachorros que são alimentados apenas à noite[11]. Não fosse trágica, seria cômica a coincidência com a citação feita por Karl Polanyi, em seu clássico livro A Grande Transformação, em que o liberal britânico Townsend defende, no século XVIII, o fim da assistência aos pobres nesses mesmos termos[12].
O que incomoda os empresários é que, se nas últimas décadas eles geriam tranquilamente o trabalho precarizado, agora, com o aquecimento do mercado de trabalho e alguma proteção social, muitos trabalhadores se recusam a retornar para empregos com salários baixos e péssimas condições de trabalho. Por exemplo, há precedentes de pedidos de demissão coletiva em estabelecimentos de fast food, lojas de varejo e restaurantes em protesto contra a qualidade das ocupações[13].
A reação empresarial parece anacrônica à luz do fato de que, entre 1979 e 2018, a produtividade no EUA cresceu 69,6%, enquanto a remuneração dos trabalhadores (exceto chefias) aumentou apenas 11,6%[14]. O caso do salário mínimo é ainda mais gritante. Segundo um relatório da Coalizão Nacional de Habitação de Baixa Renda[15], apenas 7% dos trabalhadores por tempo integral, recebendo o salário mínimo federal, conseguem locar um imóvel de um quarto sem gastar mais do que 30% de sua renda mensal bruta. Além disso, segundo o housing wage, um padrão geral para acessibilidade de moradia utilizado pelo governo federal, um trabalhador em tempo integral que recebe salário mínimo não tem condições de alugar um imóvel com dois quartos em nenhum estado.
A cena atual norte-americana evidencia um processo explícito de luta de classes em que os trabalhadores, depois de décadas, se encontram em uma situação um pouco menos desfavorável. Neste sentido, no conjunto da economia, o salário médio hora cresceu 7.8% em comparação ao início da pandemia, sendo que os maiores ganhos foram para os trabalhadores de setores de baixa remuneração. Pela primeira vez, os salários de trabalhadores no setor de restaurantes e supermercados alcançaram uma média de mais de 15 dólares por hora[16].
Esses indicadores demonstram como políticas de proteção social, amplas ou universais, contribuem para que a maioria da população tenha melhores condições de vida. Ademais, ao contrário do senso comum liberal, as políticas protetivas não têm impedido a ampliação do nível de emprego, que teve quase 1 milhão de ocupações a mais apenas em julho.
Ainda assim, são incertos os próximos passos do governo Biden, sendo prematuro avaliar a consistência da sua agenda. Por exemplo, o salário mínimo não tem reajuste desde a primeira administração do governo Obama, em 2009 (7,25 dólares por hora), contudo, a promessa de campanha de Biden, de aumentá-lo para 15 dólares, saiu do radar das discussões legislativas.
Muito se tem comentado sobre a aprovação do Plano de Infraestrutura como uma vitória para a agenda Building Back Better[17], que conta com grandes obras de infraestrutura de estradas, portos, aeroportos, carros elétricos, vias fluviais e plantas de eletricidade, entre outras áreas. Contudo, para ter um caráter efetivamente transformador, o Plano precisa ser acompanhado pela chamada Reconciliation Bill, que é o grande elemento de disputa na cena política norte-americana atual.
Trata-se um pacote de medidas que propõe desde a universalização do ensino infantil e superior, até a ampliação dos elegíveis ao seguro saúde, leis de imigração, e incentivo a energias renováveis, combinando propostas presentes no American Families Plan e no Jobs Plan, além de expandir outras temporariamente em voga pelo American Rescue Plan[18]. É o caso do Child Tax Credit e do Child and Dependent Care Tax Credit, que seriam ampliados e eventualmente se tornar benefícios permanentes[19]. A Reconciliation Bill pode ser aprovada com maioria simples, sendo apenas limitada a disposições com efeito orçamentário[20]. Isto significa que os democratas podem passar o projeto sem nenhum voto dos republicanos, o que facilita muito a aprovação da legislação.
Em um aparente aceno à pauta progressista, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, declarou que só votará o projeto de infraestrutura se a Reconciliation Bill a também for aprovada pelo Senado[21]. A aprovação da resolução do orçamento público de 3.5 trilhões de dólares é o primeiro passo para o senado votar a Reconciliation[22]. A câmara deve retornar do recesso em 23 de agosto e dar continuidade ao trâmite do orçamento que, caso aprovado, viabiliza o encaminhamento da Reconciliation, muito embora, a conclusão de todo o processo possa demorar meses.
Enquanto isso, no Brasil, o debate econômico e as políticas públicas continuam hegemonizadas pelo ideário liberal. É verdade que, logo no início da crise sanitária, foi implementado o auxílio emergencial com o valor de R$600 (e até R$1200 para as mães chefes de família), contra a vontade do governo, que queria apenas R$300. Em 2021, o auxílio foi reduzido para R$150 aos solteiros, R$250 para casais e R$375 para mães solteiras. Contudo, toda a pauta restante sobre políticas públicas mantém a trajetória anterior de manutenção da “austeridade” e “redução” do Estado, o que, na prática, tem desmantelado os serviços públicos que atendem a maioria da população. A suposta ampliação do Bolsa Família, prevista em uma Medida Provisória com muitas lacunas, foi concebida nesses termos e busca se encaixar no chamado teto de gastos.
Para piorar, desde o início da pandemia, a regulação do direito do trabalho tem radicalizado a lógica da chamada reforma trabalhista de 2017, qual seja, reduzir direitos (“flexibilizar”) para supostamente promover o emprego. Têm ocorrido mudanças que vão da fragilização das normas de saúde e segurança do trabalho, à facilitação de acordos individuais para a redução de direitos. Todavia, o desemprego não diminuiu, pelo contrário, tem batido recordes históricos.
Por fim, a Medida Provisória 1045/2021, recentemente aprovada na Câmara, tem sido chamada de “minirreforma” trabalhista, contudo, é uma excrescência que prevê redução de direitos em inúmeras frentes, inclusive a autorização de contratos de trabalho sem qualquer direito.
Infelizmente, para o nosso país, as dúvidas que a conjuntura sugere parecem ser: navegaremos sozinhos para o abismo? Os demais países fortalecerão o caminho para uma tentativa de capitalismo minimamente civilizado? Ou a “volta” do Estado e da proteção social é fogo de palha e eles voltarão ao cenário anterior, se juntando ao nosso desastre?
[1] Disponível em: https://home.treasury.gov/policy-issues/coronavirus/assistance-for-american-families-and-workers/economic-impact-payments
[2] Disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/04/28/fact-sheet-the-american-families-plan/
[3] Disponível em: https://www.irs.gov/credits-deductions/advance-child-tax-credit-payments-in-2021
[4] Disponível em: https://www.benefits.gov/benefit/937
[5] Disponível em: https://en.as.com/en/2021/08/03/latest_news/1628011395_203396.html
[6] Disponível em: https://www.usa.gov/covid-unemployment-benefits
[7] Disponível em: https://www.dol.gov/agencies/whd/pandemic/ffcra-employee-paid-leave
[8] Disponível em: https://home.treasury.gov/policy-issues/coronavirus/assistance-for-state-local-and-tribal-governments/emergency-rental-assistance-program
[9] Disponível em: https://www.consumerfinance.gov/coronavirus/mortgage-and-housing-assistance/renter-protections/emergency-rental-assistance-for-renters/?utm_source=outreach&utm_medium=banner&utm_campaign=treasury_banner/
[10]Disponível em: https://nlihc.org/coronavirus-and-housing-homelessness/national-eviction-moratorium
[11] Disponível em: https://mobile.twitter.com/justinbaragona/status/1426017141724270597
[12] “ Hunger will tame the fiercest animals, it will teach decency and civility, obedience and subjection, to the most perverse. In general it is only hunger which can spur and goad them [the poor] on to labour”
[13] Disponível em: https://www.vice.com/amp/en/article/akgy7a/we-all-quit-how-americas-workers-are-taking-back-their-power?
[14] https://www.epi.org/publication/swa-wages-2019/
[15] Disponível em: https://nlihc.org/sites/default/files/oor/2021/Out-of-Reach_2021.pdf
[16] Disponível em: https://www.washingtonpost.com/business/2021/08/08/fifteen-dollar-wage/
[17] Disponível em: https://twitter.com/POTUS/status/1425125314150141966
[18] Disponível em: https://www.politico.com/news/2021/07/13/democrats-go-big-bill-499425
[19] Disponível em: https://www.vox.com/22577374/reconciliation-bill-biden-medicare-climate
[20] Disponível em: https://www.natlawreview.com/article/don-t-forget-senate-can-t-pass-reconciliation-bill-until-house-passes-budget
[21] Disponível em: https://www.cnbc.com/2021/08/11/senate-passes-3point5-trillion-budget-resolution-after-infrastructure-bill.html
[22] Disponível em: https://www.natlawreview.com/article/don-t-forget-senate-can-t-pass-reconciliation-bill-until-house-passes-budget
*Graduanda em Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Conjunturais ((NEC) da Faculdade de Economia da UFBA.
**Professor da Faculdade de Economia da UFBA e membro do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/UFBA).
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