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Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas
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O CONCIDADES e a ameaça vencida, por Marcelo Karloni

O “ pé na porta” do governo Lula e a revogação do decreto 9.759 de 11 de abril de 2019 que extinguia os conselhos de políticas sociais

Acervo UFRGS

do BrCidades

O CONCIDADES e a ameaça vencida

por Marcelo Karloni

A constituição do grupo que conduziu a transição do Governo Federal anterior em direção ao atual que tomou posse em Janeiro de 2023 contava, em 16 de novembro, com 290 integrantes. A metodologia adotada para a realização da transição consistiu na formação de 31 grupos temáticos. Dentre as pautas tratadas pela equipe de transição estava a revogação de decretos do Governo Bolsonaro. Uma das principais políticas de Estado, a urbana, possuía também listagem de normativas que, caso não fossem revogadas, comprometeriam sua continuidade. A Agenda Urbana, fruto de um longo processo de luta ao longo desde os anos 1970, culminou na promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988 e, 13 anos depois, no Estatuto da Cidade, no ano de 2001.

Ora, ambos os marcos regulatórios – A CF de 1988 e o Estatuto das Cidade – constituem-se um conjunto soberano do ordenamento jurídico que transcende a pauta de governos federais. Estamos falando de políticas de Estado garantidoras de direitos sociais formatadas a partir do principal fundamento do Estado de Direito, a democracia.

Nesse sentido, não há nenhuma eficácia da política urbana no país sem a efetivação do que pode ser considerado o instrumento urbanístico mais importante da democracia e que está nos dispositivos preconizados na Constituição Federal e no Estatuto da Cidades: a participação popular.

No Estatuto da Cidade temos que:

Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:(…). II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano(…)Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos(…)§ 3oOs instrumentos previstos neste artigo que demandam dispêndio de recursos por parte do Poder Público municipal devem ser objeto de controle social, garantida a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil.(…)Art. 45. Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania. (GRIFO NOSSO)

Não sem razão, a administração anterior do Governo Federal, conhecida por suas inúmeras tentativas de relativizar a importância da democracia ao longo de seus quatro anos de vigência, operou, em 2019, um processo de redução/extinção dos conselhos de politicas sociais. Andaram desse modo juntas duas intenções: a subtração de direitos sociais e fechamento dos canais de comunicação com a população.

Por um lado, destinou-se entre 2019 e 2022 parte considerável dos recursos federais via investimentos, subsídios e outras rubricas a grupos privilegiados com poder decisório enquanto dilapidava-se, na outra “ponta”, toda institucionalidade capaz de fazer frente por vias legais ao apetite voraz do capital em suas muitas frações que, no caso da política urbana, é  o capital imobiliário. 

Assim, esperava-se que o governo eleito em 30 de outubro de 2022 operasse segundo as necessidades de sua população, especialmente a mais vulnerável e habitante das cidades brasileiras e reabilitasse institucionalmente todos os dispositivos legais capazes de fazer frente, não só ao capital especulativo e imobiliário, mas também aos humores do chefe do executivo, seja ele qual for.

Como exemplo dessa disputa tem-se o Decreto 9.759, de 11 de Abril de 2019, que, na prática, extinguiu vários conselhos de politicas sociais, inclusive o Conselho das Cidades (CONCIDADES). Essa é uma das maiores provas do caráter autoritário do qual se revestiu a política urbana ao longo dos quatro últimos anos. Quer dizer, se é que se pode falar da existência de uma política urbana no país nesse mesmo período.

Por exemplo, ainda que no portal do Ministério do Desenvolvimento Regional seja possível identificar a descrição do CONCIDADES, o Decreto 9.759, editado em 2019, ainda encontrava-se em vigor até 31 de dezembro de 2022 e comprometia, de fato, a execução de uma política urbana não centralizada e pautada na democracia.

Lê-se assim o referido decreto revogado em janeiro de 2023:

Art. 1º  Este Decreto extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.” (…) “§ 2º  Aplica-se o disposto no § 1º aos colegiados instituídos por ato infralegal, cuja lei em que são mencionados nada conste sobre a competência ou a composição. (GRIFO NOSSO,2019).

Foi clara e inequívoca a intenção do decreto: buscava a extinção do conjunto de normativas que permitiriam o funcionamento de instâncias colegiadas. Vamos observar o segundo artigo do mesmo decreto:

Art. 2º Para os fins do disposto neste Decreto, inclui-se no conceito de colegiado: I- conselhos; II- comitês; III- comissões; IV- grupos; V- juntas; VI- equipes; VII- mesas; VIII- fóruns; IX- salas; e X- qualquer outra denominação dada ao colegiado. (GRIFO NOSSO,2019).

Importa ainda ressaltar a repercussão da extinção dos conselhos, auferida por uma série de matérias na mídia especializada. Segundo matéria publicada pelo portal Brasil de Fato no dia posterior à promulgação do decreto, em 12 de abril de 2019:

A medida impacta, especialmente, conselhos criados durante a administração do Partido dos Trabalhadores (PT) e que compunham o Plano Nacional de Participação Social. Entre eles estão: Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, Conselho Nacional de Combate a Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT. Segundo o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, existem 700 grupos originados do Plano, e de outras medidas ao longo dos anos, em atuação no Brasil. De acordo com ele, a meta é reduzir o número para 50. Uma primeira versão desta nota informava que o Conselho de Defesa da Pessoa Humana estaria entre os colegiados extintos. Na verdade, o conselho foi transformado, por lei, no Conselho Nacional de Direitos Humanos – sendo assim, não será afetado.(GRIFO NOSSO).

Por meio do decreto 9.759, a democracia sofreu um de seus mais duros golpes. Sob risco de ser transformada em lei, mas não em conteúdo, a democracia perdeu substância e se viu “corroída” por dentro sem que, estranhamente, esse processo ganhasse espaço nos fóruns de discussão da agenda urbana, dos direitos humanos e de outros conselhos ameaçados como se entende pela matéria acima citada.

Qualquer governo que se propusesse a fazer retroceder os avanços autoritários experimentados pelo Brasil a partir de 2016, caso não enfrentasse e revogasse tal decreto, estaria permitindo o abrigo no seu conjunto normativo e de um marco autoritário na condução de suas políticas.

Obviamente, as políticas de Estado ainda correm risco. Risco não de implementação, mas, sobretudo, de não corresponderem às demandas reais dos beneficiários. Isso porque o instrumento de controle social dado aos cidadãos anônimos espalhados no território são exatamente tais conselhos.

Na não existência dos conselhos, o cidadão comum – como este que escreve o presente texto – assistiria a políticas sociais sendo implementadas, mas não sem possibilidades reais de cooperar na formulação das mesmas junto ao Estado. Protagonismo, tudo que estruturas centralizadas abominam caso destinado aos excluídos dos processos de decisão.

Eis assim descrito um traço autoritário, a incapacidade de ouvir o povo em suas demandas ao passo que, em outra direção, é prova de respeito à democracia, ao instrumentalizar e conferir status aos canais de comunicação desse mesmo povo com seus representantes eleitos.

Em matéria publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) sobre a extinção dos conselhos de políticas sociais há outra consideração importante sobre os efeitos do decreto revogado.

Entre os ameaçados estão organismos fundamentais para a sociedade brasileira como o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT), o Conselho Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), o dos Direitos do Idoso (CNDI), o de Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC), o Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), o de Relações do Trabalho, o de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), a da Biodiversidade (Conabio), o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI). Para se ter ideia do caos que pode estar sendo criado, entre os conselhos que têm participação da sociedade civil serão extintos pelo decreto de Bolsonaro estão os das Cidades e o Gestor do Fundo de Habitação para Interesse Social. “Com isso, praticamente toda a política de desenvolvimento urbano é desmontada, pois estes órgãos são os responsáveis por definir a alocação dos recursos do Fundo destinado à política da moradia”. (GRIFO NOSSO).

O Conselho das Cidades (CONCIDADES) e o Conselho Gestor do Fundo Nacional de Habitação para Interesse Social (CGFNHIS)  estavam entre os conselhos extintos pelo Decreto 9.759.

O CGFNHIS foi criado pelo Decreto 5.796/2006 – sob o governo Lula – e tem em sua descrição a competência para estabelecer diretrizes, aprovar orçamentos e deliberar sobre as contas do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). É um conselho fundamental para a política de habitação, pois a partir de seu funcionamento se decide políticas importantes como a alocação dos fundos para habitação de interesse social.

Ao acessar a página do portal do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) em busca das atas de reunião do referido conselho[1] é possível constatar que a última reunião foi em 21 de dezembro de 2017. Baseando-se na disponibilização de informações pelo portal do MDR tem-se que é um conselho sem funcionamento – ou pelo menos, sem registro de funcionamento – há mais de cinco anos.

Por fim, importa ressaltar os principais aspectos referentes ao retrocesso advindo do Decreto 9.759 para a efetivação da democracia participativa. São esses:

  1. O papel dos conselhos de políticas sociais é fundamental para a consolidação da democracia no nível do exercício da cidadania plena;
  2. É o funcionamento desses conselhos que garantem que a democracia não se veja limitada à realização do sufrágio universal e periódico, permitindo o controle social das políticas de Estado;
  3. No caso específico, o CONCIDADES foi criado em 2004. A gestão democrática da política urbana, já prevista tanto na CF de 1988 como no estatuto das cidades de 2001, por meio do instituto da participação tem nessa institucionalidade extinta via decreto um marco fundamental para sua implementação; 
  4. Para a política urbana em um país com as dimensões do Brasil, essa instituição se justifica também em virtude das especificidades territoriais e diversidade de agentes como ONGs, entidades de classe, movimentos sociais, Academia e outros arranjos;
  5. Sem a participação desses agentes, a política urbana no Brasil vê-se sob ameaça de uma execução centralizada com viés autoritário;
  6. A reabilitação do CONCIDADES, bem como os demais conselhos de políticas sociais, significa um passo em sentido adiante na agenda urbana, bem como a sua descontinuidade representa retrocesso de conquistas sociais importante,  nunca de estagnação no ponto em esta se insere na atualidade.

É necessário ressaltar que esse processo de redução dos espaços de discussão e de controle público das ações do Estado brasileiro via decreto  pode ser situado num contexto mais amplo de retrocessos sociais experimentados a partir de 2016.

A pobreza no Brasil se viu reduzida em intensidade diversa da redução da desigualdade. Fato esse que, ao lado de um processo concomitante de avanço e ascensão dos partidos de direita e extrema direita, não apenas freou, mas fez retroceder grande parte dos avanços experimentados entre 2003 e 2014 no nosso país.

Ignorar os termos conjunturais nos quais o Brasil se viu posto após o ano de 2013 – com a eleição de uma das bancadas mais conservadoras da história republicana – que se viram ampliados após as eleições gerais em 2018 é não compreender o peso e o significado de decretos como o 9.759.

Porém, é importante dizer que aqui não se defende a noção de que a transformação social advirá apenas por meio da edição legal de instrumentos, uma vez que  direito é uma das formas do Capital. Daí, o limite do alcance das transformações por ele pretendido ainda que justas. A transformação social – nos moldes do marxismo clássico – adviria das lutas sociais e do avanço das pautas da classe trabalhadora e não do reformismo. Entretanto, ignorar que mudanças legais sejam capazes de fazer retroceder as “pequenas” conquistas não é razoável. As mudanças na legislação levam tempo para produzir eficácia e sabe-se, por outro lado, que forças sociais têm outras arenas de disputa além da legal. Entretanto, negar o peso das medidas legais – não necessariamente justas – como o referido instrumento que pleiteia a revogação em tela é fechar via de disputa narrativa e de recursos como no caso do CGFNHIS.

Ao fim, é preciso ter em vista que, mesmo com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva em 30 de outubro de 2022, a disputa seguirá com vistas à captura de um Estado que agiria em maior favor da classe mais pobre e vulnerável, após esse período de frustração e diante da pouco expressiva redução da desigualdade.

Acredita-se que a rearticulação da direita conservadora – hoje ainda mais forte no Congresso Nacional – ligada aos interesses dos grupos privilegiados, construtoras e por essas financiadas quando em campanha para prefeituras municipais em 2024,  empurrará a história para repetição, caso a critica não venha pela “esquerda”.

Qual a alternativa? Mobilização popular, fim dos guetos de conhecimento e proposição, além de nunca abandonar aquilo que de fato uniu a esquerda: a luta pelo fim de todas as classes e não apenas a vitória de uma classe sobre outra.

 Felizmente, a esperança é que ,no primeiro dia útil do governo de Luís Inácio Lula da Silva, o decreto 11.371 de 01 de janeiro de 2023 pôs abaixo um dos marcos legais mais autoritários do governo de seu antecessor. A saída vem pela esquerda e ouvindo o povo brasileiro.

Dr. Marcelo Karloni é Professor da Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Curso de arquitetura e urbanismo e membro do Núcleo Arapiraca da Rede BrCidades. 


[1] https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/habitacao/conselho-gestor-fnhis

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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