A destituição da sociabilidade emersa no urbano, por Daniel Ferreira Henriques

A urbanização, vista como um processo do avanço decorrente do capitalismo industrial, definiu uma forma específica de ocupação espacial

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A destituição da sociabilidade emersa no urbano

por Daniel Ferreira Henriques

Na obra “A Revolução Urbana” (1970)[1], Henri Lefebvre propõe uma investigação acerca do “urbano”. O que se busca verificar é no que consiste o urbano. O autor confere a tal categoria o caráter de interrogação ante o desconhecimento do que seriam o ambiente e a constituição social referentes ao período pós-industrial. Adviria deste, um desconhecido espaço constituído a partir do tensionamento provocado pela progressiva destituição da industrialização como elemento balizador de projetos e ideologias.

A urbanização, vista como um processo decorrente do avanço do capitalismo industrial na Europa e nos Estados Unidos em meados do século XIX ao XX, definiu uma forma específica de ocupação espacial, a cidade industrial. O planejamento desse espaço, por sua vez, surgiu da busca por soluções de problemas decorrentes do próprio processo de urbanização.

Peter Hall, em “Cidades do Amanhã”[2], observa a Inglaterra no âmago da revolução industrial. Em perspectiva estão as periferias das principais cidades industriais britânicas, denominadas de “submundo”, em função do miserável estado de coisas que contempla o espaço tomado pela insalubridade dos cortiços. A disseminação de doenças, as elevadas taxas de mortalidade e as pressões populares que começam a prejudicar o progresso e a eficiência produtiva das indústrias ensejam, em finais do século XIX, a definição de projetos de planejamento urbano, a racionalização das cidades em vista do desenvolvimento do modo de produção capitalista.

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A questão habitacional fez-se premente em função das péssimas condições de vida das populações residentes nos centros urbano-industriais. As logísticas urbanas foram sendo racionalizadas em relação estreita com o desenvolvimento tecnológico, em especial dos meios de transporte. O planejamento da ocupação espacial, conferido a partir da formulação de planos industriais e urbanísticos, serviram para viabilizar o espraiamento e a regionalização dos territórios urbanos.

A disputa pela apropriação territorial e a imposição da logística produtiva industrial e dos fluxos de capitais sobre a questão habitacional determinaram, contudo, o tensionamento entre os planos urbanísticos e as políticas habitacionais. O que se evidenciou foi a prevalência da imposição do capital na busca por saídas à melhor organização da produção.

Nessa linha, atentou Peter Hall para o afastamento existente entre aquilo o que foi idealizado e contemplou aspectos mais amplos, uma visão de sociedade, do que puramente a “forma construída” e a execução dos planos em si.

O planejamento urbano revelou-se, assim, como a formatação de um ordenamento espacial que bem viabilizasse e desse vazão à produção industrial e à reprodução capitalista, ainda que em detrimento das condições de vida dos habitantes das cidades. Cumpriu a ele a apropriação e organização do espaço social visando a otimização da dinâmica do capital fabril.

Da cidade industrial avançou-se temporalmente ao espaço urbano ou urbano. O urbano, segundo Lefebvre, um espaço ainda inconcluso e desconhecido, pois sem expressão definida ante o declínio da industrialização como referência ideológica, social e política. Nele, constituiu-se a chamada “sociedade urbana” em processo contínuo de estranhamento das estruturas de representação da cidade industrial.

Antes mesmo que tal processo se estabelecesse, Georg Simmel observara os conflitos e contradições existentes na sociedade ainda no âmago do fenômeno industrial e de urbanização dos espaços. Em seu artigo “As grandes cidades e a vida do espírito” (1903)[3], Simmel verifica as tensões geradas pelas divergências naturais entre a subjetividade humana e o estado de coisas imposto pela vida metropolitana. O individualismo, a objetividade, o materialismo, a impessoalidade são exemplos de elementos do “espírito” citadino que bem representam esse estado de coisas de que trata Simmel.

Nessa linha, a singularidade e a condição subjetiva do Ser dão lugar ao comportamento padronizado da massa urbana. A racionalização humana é remodelada pelo meio. A realização pessoal passa a ser conferida pelo trabalho, pela mercadoria, pelo consumo. O espírito contábil ocupa a vida mental da sociedade imersa no fetiche da moeda, que em paroxismo, torna o dinheiro um fim em si mesmo.

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O avanço dessa sociedade na direção do declínio industrial intensificaria a crise identitária. A partir disso, questiona Lefebvre no que consistiria tal fase crítica. Em “Sociabilidade, hoje: leitura da experiência urbana”[4], Ana Clara Torres Ribeiro busca alinhavar ideias em torno dessa crise na contemporaneidade. A autora a denomina de “crise societária”.

No trabalho supracitado, na esteira do que observou Simmel, Ana Clara enfatiza aspectos compreendidos em um espaço dominado pelo individualismo, pela objetividade, pela monetização/financeirização da vida. Nesse espaço, o avanço da modernidade teria deteriorado o “tecido social”, provocando fragmentação, destituição da “sociabilidade”, fragilização de valores compartilhados. A vida coletiva, assim, perdia sentido e relevância, deixando de ser objeto, elemento a ser considerado.   

Na área do conhecimento e da ação pública, na mesma direção, o utilitarismo e o pragmatismo sobrepunham o “fazer sociedade”. As políticas públicas e as agendas participativas estariam restritas em ações “estratégicas”, “instrumentais”, incapazes de incorporar o “ato socializador radical”. No urbano, a cidade torna-se, portanto, empreendimento. A cidade tem que ser rentável ao capital para ser factível, viável. Sem rentabilidade, é apenas espaço ocupado largado ao tempo e à própria sorte.

Daniel Ferreira HenriquesMestre em Economia pela UFF, Mestrando em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas pelo PPGDAP-UFF (Campos dos Goytacazes) e pesquisador do FINDE-UFF.

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[1] LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

[2] HALL, Peter et al. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX (edição revista e aumentada).  Brasil: Editora Perspectiva S/A, 2020.

[3] SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana [online].  v. 11, n. 2, pp. 577-591, 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-93132005000200010. Acesso em 9 Abr. 2022. 

[4] TORRES RIBEIRO, Ana Clara. Sociabilidade, hoje: leitura da experiência urbana. Caderno CRH. v. 18, n. 45, pp. 411-422, 2005. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/crh/article/view/18535/11911. Acesso em 9 Abr. 2022.

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