O desonesto não acredita que exista no mundo honestidade, por Marcia Tiburi e Rubens Casara

Jornal GGN – Em artigo na Revista Cult, Marcia Tiburi e Rubens Casara falam sobre a ausência de empatia e a desconfiança natural dos desonestos. Para os autores, a dificuldade em aceitar que certas pessoas lutam para defender direitos para todos revela, primeiro, as falhas de caráter nos desonestos. “A desconfiança na honestidade comprovada é a estratégia para esconder a própria desonestidade”, dizem.

“A honestidade torna-se uma característica estranha quando a norma é a desonestidade compulsória. Desconfiar é, nesse contexto, um gesto de autodefesa subjetiva com a qual o desonesto sempre lucra”.

Abaixo, a íntegra do artigo:

Da Revista Cult

Caça às bruxas

Por Marcia Tiburi e Rubens Casara 

Há algo de estranho quando as pessoas passam a desconfiar de quem defende direitos para todos, inclusive para aqueles que são ignorados, quando não massacrados, por quem detém o poder econômico ou político.

Há quem não veja nada de estranho nisso. Em outras palavras, há quem veja com maus olhos justamente quem combate injustiças e defende os direitos dos que sobrevivem sem direito algum. É como se preferissem uma sociedade sem direitos. O ódio àqueles que mantêm viva a ideia de que a sociedade só é possível se direitos fundamentais forem respeitados torna-se cada vez mais comum e natural.

Acostumados a não respeitar as diferenças, a etiquetar o “outro” como inimigo, a pensar de acordo com critérios impostos pelas elites, a negar direitos a quem enquadram como diferentes, ao mesmo tempo em que reconhecem  privilégios aos amigos, acostumados a naturalizar os abusos e as violações, os que se autointitulam “cidadãos de bem” passam a medir os outros como se olhassem para um espelho sem que tenham como perceber esse fato. A partir da ignorância, do egoísmo e da seletividade  que marcam sua maneira de atuar no mundo, pessoas medem outras impondo, contudo, uma lógica de dois pesos e duas medidas.

Em geral,isso acontece com todo mundo. Medimos o outro por nós mesmos. Aplicamos a lógica da medida baseada em inferior e superior, pior e melhor, e nos colocamos, evidentemente, sempre no lugar do superior e do melhor. O outro tem que representar o pior para assegurar que o melhor seja reservado a mim. Sobretudo se percebemos que o outro esteja na “melhor” posição, no lugar do sucesso, da admiração, do amor, então as coisas ficam piores ainda. O que fazemos para o outro, a favor ou contra, tem a função de nos fazer lucrar subjetivamente. É raro uma atitude realmente desinteressada. Mas quando o outro se apresenta como algo de melhor, aí sim, é que vivemos o teste da personalidade autoritária e fascista em cuja base os afetos mais tristes comandam os pensamentos mais tortuosos e as ações mais abomináveis.

Nesse contexto, a incapacidade de olhar para si mesmo de maneira autocrítica é proporcional ao gesto de projetar no outro aquilo que, no fundo, odeia em si mesmo ou aquilo que, não podendo ter, causa um sério mal estar. Em termos simples, quem odeia deveria olhar melhor para o que odeia, pois odeia no outro algo que lhe é muito íntimo por excesso ou falta.

Desonestidade compulsória

Assim podemos compreender como aqueles que se tornaram incapazes de empatia, de generosidade e de amor ao próximo, são capazes de acreditar que há algo de podre nos que revelam ser possível pensar e agir diferente. A desconfiança de quem é profundamente desonesto recai sobre a honestidade alheia tratada como impossível. A honestidade torna-se uma característica estranha quando a norma é a desonestidade compulsória. Desconfiar é, nesse contexto, um gesto de autodefesa subjetiva com a qual o desonesto sempre lucra.

A desconfiança na honestidade comprovada é a estratégia para esconder a própria desonestidade. Como o psiquiatra que diagnostica a todos como loucos esconde-se como o único lúcido que restou, o juiz que mostra que todos são culpados, esconde-se como o único ininputável, o policial que a todos admoesta, prende e violenta,  é quem parece fazer justiça. Sabemos onde isso vai dar quando pensamos no que vem sendo feito com a corrupção, transformada a cada dia em uma curiosa ideologia de acobertamento da própria corrupção. Usa-se hoje a “corrupção do outro” para evitar parecer corrupto e assim manter a corrupção real em seu lugar assegurado.

No fundo de tudo isso, há o mais perigoso dos afetos: a inveja, que está na base mais profunda da personalidade autoritária. É a inveja que potencializa o ódio que vemos manipulado em nossa cultura pelos meios de comunicação e as demais instituições de poder.

Aqueles que invejam são incapazes de mudar, querem excluir ou exterminar quem, por pensar diferente (ou apenas por pensar), os humilham em sua posição de invejosos.  Como fascistas, tem ódio ao conhecimento.

As recentes notícias envolvendo o juiz amazonense Luis Carlos Valois parecem apontar para esse fenômeno cada dia mais atual: a demonização daqueles que acreditam ser possível um outro mundo. Para mentes tacanhas, uma pessoa que respeita direitos dos presos (e, por isso, é respeitada por eles), tem que estar envolvida com ilicitudes. É a lógica da medida que tenta inferiorizar quem parece melhor do que os demais em um contexto em que ser e agir pelo pior é a regra. A honestidade torna-se um valor impossível. Consegue-se com isso fundamentar a desonestidade e a corrupção como uma regra, mais, como uma lei. Quem ameaça essa lei deve ser punido. Antes de qualquer outro.

Na inversão ideológica, que fique claro, os direitos fundamentais dos cidadãos são tratados como o que há de pior, o que não deveria existir. E as pessoas que são consideradas inferiores não devem ter direitos porque elas também não deveriam existir. Consegue-se assim sustentar a lógica profunda da ação violenta contra os direitos: a do extermínio dos que não tendo direitos não conseguirão sobreviver.

É o que vem acontecendo com várias pessoas que ousam manter os valores democráticos, que ousam ser realmente honestas. Vide o caso de políticos acusados de corrupção que se apressam para acusar de corrupção outros políticos, mesmo que contra esses não existam provas. Todos os que não se curvarem à ordem da corrupção do pensamento, das emoções, dos direitos e das ações, pagam caro nesse momento. São caçados pelos próprios colegas.

Luis Carlos Valois é um juiz conhecido por não buscar o aplauso fácil assegurado aos que cedem à espetacularização da Justiça, não reproduzir os mantras dos meios de comunicação de massa, opor-se à insana “guerra às drogas”, respeitar os direitos fundamentais de todos e dedicar-se à academia (em meio de tantos atores jurídicos, fascistóides, que têm ódio ao conhecimento). Em seu caso, como não ser culpado?

A honestidade, a coragem democrática, ofende os covardes.

Redação

9 Comentários

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  1. Algumas pessoas

    Algumas pessoas experimentarão resistências se tentarem ler o texto da Márcia e do Rubens com atenção…

    Eva Pierrakos, nascida Wassermann, diz que é fácil ao solidário dar um “perdido” no egoísta porque o solidário é adulto, independente, auto-suficiente e forte, enquanto o egoísta é imaturo, dependente e fraco. Por isso, diz ela, o solidário pode conhecer o outro enquanto o egoísta apenas se projeta. O solidário mesmo sem ninguém por perto não se sente solitário e o egoísta sente solidão mesmo cercado de gente por todos os lados. O solidário é sábio porque sente que sempre tem algo a aprender, o egoísta é burro porque acha que já sabe tudo. O solidário e o egoísta convivem em cada pessoa. Com um pouco de disciplina, dá prá fazer o solidário dar um brinquedinho qualquer ao egoísta para distraí-lo – um espelho, por exemplo – e tomar as rédeas do ser.

    Será?

    http://www.pathworkbrasil.com.br/Default.aspx

  2. Artigo primoroso, não só oportuno mas necessário neste momento.

    Lendo este artigo fico cada vez mais convencido de que a Filosofia deve fazer parte do currículo escolar, não apenas no ensino médio e universitário, mas deste os dois últimos anos do ensino fundamental. E não só a Filosofia, mas as Ciências Sociais e Políticas. É fácil perceber por que os os golpistas, broncos, nazifascstóides que compõem a quadrilha que aplicou o golpe de Estado não querem a discussão de temas sociais, políticos, filosóficos, históricos, religiosos, etc. nas escolas públicas. As ciências humanas já sofreram um golpe por parte dos saqueadores. Na página de O Cafezinho foi publicada, no dia 16 de junho, uma reportagem sobre a CAPES em que se pode ler o seguinte;

    “A definição de prioridades entre as áreas para distribuição de recursos significou uma diminuição da participação dos recursos da área de ciências humanas de 15% do total em 2015, para 5% do total de 2016.”

    Afinal de contas aos golpistas não interessa formar cidadãos pensantes e quetionadores. Basta que sejam formados operários-padrão, técnicos ou engenheiros que saibam operar as engenhocas projetadas e fabricadas no exterior, médicos que nos seus consultórios e clínicas particulares tenham os caríssimos equipamentos da bilionária indústria médico-hospitalar, toda ela com matriz nos EUA, Europa, Japão e outros países ricos da Ásia.

    Essa questão do desonesto duvidar da honestidade alheia é clássica emblemática, embora muitas vezes esquecida. Vou citar dois exemplos.

    1) Entre colegas de trabalho e ex-colegas de faculdade faço parte de uma minoria que defende ardorosamente a Democracia e que não transige com abusos e crimes por parte de qualquer agente público, mesmo que sob alegada justificativa de combatrer “um mal maior”. Recentemente, após uma acalorada discussão, colegas falaram do período estudantil, quando passavam ou recebiam ‘cola’ de colegas. Afirmei taxativamente que JAMAIS usei desse expediente fraudulento, portanto desonesto, ao longo dos vinte anos em que fui estudante. Eles se mostraram incrédulos e ‘indignados’ com minha afirmação e me perguntaram: “Você se acha mais honesto ou melhor do que nós?” Fui categórico na resposta: “Se vocês usavam esse expediente, sim.”

    2) Um clássico caso/exemplo usado pelos desonestos é aquele em que o motorista comete uma infração e aceita pagar ou oferece propina ao agente de trânsito, para se ver livre da multa. Um caso semelhante ocorre quando um examinador do DETRAN exige ou aceita pagamento de propina, para conceder a CNH a um candidato inapto a dirigir veículo automotor ou quando, mesmo para um motorista apto, o examinador corrupto só libera a CNH se receber propina. JAMAIS compactuei ou compactuao com QUALQUER desses expedientes fraudulentos e desonestos. Não sou “Pollyanna” ou melhor que os outros, sou apenas honesto.

  3. Ninguem usa desconfiança na

    Ninguem usa desconfiança na honestidade como estratégia para esconder a própria desonestidade. Os desonestos detestam honestos simplesmente porque atrapalham seu modus operandi. Desonestos usam da desconfiança para iniciar uma tentativa de corromper honestos, visando torna-los do mesmo time, ou então afastá-los definitivamente. Exemplos claros são os tratamentos especiais dispensados a delatores. 

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