O inferno do só pensar, por Élder Ximenes Filho

A ação passou a ser repostar a última análise e aguardar a próxima – que, talvez, traga consigo os chinelos do destino e o mapa do futuro.

Millôr Fernandes

O inferno do só pensar

por Élder Ximenes Filho

“Livre Pensar é só Pensar” foi frase de efeito, artigo e coluna do grande Millor Fernandes no seminal jornal de humor e política O Pasquim1 – chegou a ser tão influente que terroristas de extrema-direita (na última ditadura civil-militar) lançavam bombas em bancas e livrarias que o vendiam.

Naquele tempo, só o teu pensar poderia até te matar! Continuou-se pensando e agindo até a ditadura cair de podre e o pensar livrar-se da censura. O agir deste pensar trouxe a democracia e manteve aceso o sonho dum Brasil solidário, humano e descolonizado. Com todos os riscos, pensava-se, escrevia-se, divulgava-se e, principalmente, agia-se: panfletava-se, pixava-se, piqueteava-se, ajudava-se, fugia-se, retornava-se, apedrejava-se, guerrilhava-se, organizava-se, sindicalizava-se, associava-se, greveava-se, lutava-se e (quando voltaram as eleições) votava-se…

Duas gerações, uma internet e várias guerras híbridas após a redemocratização tivemos um golpe moderno implementado (2016) e outro tentado (2023). De lá para cá o que mais se fez é “Só pensar”, aliás, cada vez mais livre, inclusive nas formas: textões, memes lacrantes e vídeos lindos. Ou seja: analisa-se, reanalisa-se, retroanalisa-se…

O problema é que faz tempo relegamos todos aqueles “agires” para muito depois do “Só pensar”. Aguardamos a análise definitiva, a resposta, o roteiro induvidoso do processo histórico a descer dos céus. A ação passou a ser repostar a última análise e aguardar a próxima – que, talvez, traga consigo os chinelos do destino e o mapa do futuro.

Já disseram antes que andamos “cegos de tanta luz”, que o excesso de informação é imobilizante e dissemina mais dúvidas do que certezas. Mas quem disse que é preciso ter certeza para viver? Baixamos das árvores e saímos das cavernas com a certeza do sucesso? Claro que não! Tanto assim que nossos primos2 (tão hominídeos como nós) saíram pelo mundo e foram extintos. Escapamos nós, os violentos e desconfiados homo sapiens, mas também gregários, solidários e sonhadores. Qual o impulso? As necessidades básicas do momento: moradia, alimento, sexo e segurança (aqui incluído não virar comida de um bicho mais forte). Não é preciso refletir muito para ver que, no essencial, os motivos são os mesmos, variam os formatos.

Seis milhões de anos de muita ousadia, de riscos assumidos ante a morte. Viemos guiados, no máximo, por algumas vagas ideias em nosso cérebro que começava a processar padrões e projetar abstrações. A trilha para a água (evitando o lobo) chegou ao projeto do satélite (prevendo o furacão). Tanto numa experiência como noutra, houve baixas, mas chegamos até aqui pois aprendemos. E este aprendizado foi de agir-pensar e pensar-agir. Simultâneo e recíproco. As mãos e os pés ensinando ao espírito o que era preciso! A mente convencendo o corpo do que era possível! Uma pessoa puxando a outra e o grupo caminhando. Muitas vezes guerreando, mas principalmente colaborando, assimilando e crescendo3. Em nome de uma ficção qualquer, incorporada num xamã, rei ou filósofo, perseveramos em números vastos, embora as certezas fossem poucas e mudassem conforme lugar e tempo. Os caçadores-coletores que migraram para o desconhecido fiaram-se em pouco mais do que numa esperança: a palavra de um indivíduo que apontou (sem provas) e disse “o jeito é ir por ali”. E fomos, embora muitos tenham ficado. Os soldados em Stalingrado obedeceram5: “Nenhum passo atrás”. E vencemos os nazistas, embora tantos hajam morrido.

Sem certezas absolutas. Com muita dúvida mesmo. Fomos. Vencemos. Porque era o jeito!

Em pouco4 tempo ocupamos todos os lugares, com muito sofrimento, mas atingimos um patamar onde objetivamente existem soluções para todas aquelas necessidades básicas: é possível que todo mundo more e alimente-se dignamente, viva seguro e namore de vez em quando. É verdade que existem as elites que açambarcaram os recursos, convencendo a maioria a entregar as riquezas de seu tempo, a troco de bem pouco. Mas antes nem recursos existiam, fora paus e pedras! Nem ideias havia sobre riquezas, tempo e revoluções. No imenso curso da história, “esta” humanidade já realizou o mais difícil (começando por também não ser extinta). Em termos muito, muito amplos, há razão para otimismo… se não pararmos!

O grande poeta Leonard Cohen6 compôs a canção “On That Day”, na qual um novaiorquino “médio” e até meio bobo, vê o atentado de 11 de Setembro e não entende nada. Não sabia das motivações (religião, ódio, vingança, justiça). Apenas viu que havia perigo e, no mesmo dia, apresentou-se ao serviço (quartel de bombeiros ou do exército). Sem acesso aos grandes planos ou ideologias, na dúvida trouxe o que tinha: seu tempo e suas mãos…

Antes das várias orações diárias, os muçulmanos precisam purificar-se, fazendo as abluções. Limpam sequencialmente as mãos (pois estas cuidam do corpo), a boca e as narinas (para delas virem a boa palavra e o bom alento), o rosto e os olhos (bem mostrar-se ao mundo e vê-lo de modo puro), os braços (ligam as mãos ao corpo), as orelhas (ouvir com perfeição) e os pés (conduzem todo o corpo pelo mundo). A oração como ação e prática material além (ou antes) de espiritual.

Na canção “A Messe é Grande”, dos freis portugueses Miguel de Negreiros e Acílio Mendes7 entoa-se: A messe é grande e o pão é abundante: Venham mãos repartir! // Muitos têm fome e sede de justiça: Quem lhes quer acudir? // A messe é grande e falta muita gente! // É preciso rogar Ao Deus da messe // que mande operários Para o mundo salvar. ” Novamente, um canto-convocação; não contemplativo, mas inseparável de um estar-agir no mundo.

As grandes religiões ou mitologias ou ideologias, como ficções condutoras (podendo levar à emancipação ou à escravidão), são formalmente8 os grandes chamados para a ação organizada.

Sempre o agir do ser humano, que ainda se acostuma a viver em grandes grupos – mas que jamais esteve parado.

Até agora só disse obviedades, não é?

Pois então compartilhemos este mistério, cá entre nós:

– Se a coisa deu certo há tanto tempo e em tantos lugares, porque diabos não conseguimos sair do grupo do Zap?

Humildemente creio que nunca, jamais precisamos da utópica certeza, do caminho limpo, do líder imaculado, da luz maravilhosa… noutras palavras, da mais-que-perfeita análise político-econômico-ético-religiosa em versos alexandrinos ou ritmo de funk. As necessidades são as mesmas… é preciso decidir pela ação.

Se quiser, baixe o PDF. Vamos ler um pouco sobre práxis em Marx9 ou em Paulo Freire10: a estreita relação entre uma interpretação da realidade e da vida e a consequente prática que decorre daí, levando a uma ação transformadora. Sem separar teoria/reflexão de ação/transformação do mundo. Sem esperar uma pela outra. Retroalimentam-se e melhoram uma à outra.

Mas baixe para o celular e vai lendo no caminho, viu! Caminhar é o que interessa.

Melhor ainda (pois “é o jeito”): vamos adotar por hoje uma ideia/análise dentre tantas dos grupinhos – e nem precisa ser bonita. Mas de qualquer jeito vá para a rua, para a passeata, para o comício. Compareça e discuta na reunião do condomínio ou da associação ou do clube. Aborde gente na rua, no transporte, no comércio. Leve mais alguém. Convença uma pessoa por dia, basta uma – pois caminhar é o que interessa.

Primeiro, permita que sua ação ensine ao seu pensar… depois você pode mudar de análise, uai!

Ah, mas e a “militância digital” não tem importância? Tem, mas isto você faz com uma das mãos, enquanto a outra segura a bandeira!

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

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1. Tudo digitalizado e acessível na Biblioteca Nacional – aproveite: https://bndigital.bn.gov.br/acervodigital

2. Pelo menos 21 espécies, segundo o Smithsonian: https://humanorigins.si.edu/evidence/human-fossils/species

3. Os primos champanzés combatem grupos rivais, preparam emboscadas… mas os europeus possuem uns 3% de DNA neandertal (ou seja, entre as brigas, amor se fez).

4. Da revolução agrícola até agora são uns 12 mil anos – num planetinha onde a vida surgiu há 4 bilhões de anos e que já passou por cinco extinções massivas.

5. A ordem nº 227, do Comissariado de Defesa do Povo, a partir de 1942: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_n%C3%BAmero_227

6. Antes que alguém reclame, digo logo que ele simpatizava com o sionismo conservador, sim – o que não muda em nada a maravilha de seus versos. Aprendamos a separar pessoa de obra.

7. https://www.capuchinhos.org/images/musica/cd_k7/vive_da_palavra/a5_a_messe_grande.pdf

8. Yuval Harari, em “Sapiens” bem divulga esta teoria que aqui demais simplificamos – embora não seja o autor originário, mas o mais didático.

9. Na “Segunda Tese sobre Feuerbach” (googla que acha)

10. No “Pedagogia do Oprimido” (idem, né?)

Por Élder Ximenes Filho, Mestre em Direito Constitucional, Promotor de Justiça e Membro do TRANSFORMA MP

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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