Cidadania

O mercado antes do capitalismo, por Saulo Barbosa

O mercado antes do capitalismo

por Saulo Barbosa Santiago dos Santos

O feudalismo (500 – 1500), sistema político, econômico e social dominante na Europa Ocidental durante a Idade Média, caracterizava-se pela autossuficiência dos feudos. Um feudo era uma grande propriedade rural, geralmente composta por terras aráveis, pastagens, florestas e um castelo fortificado. No entanto, eventos como as Cruzadas (1095 – 1291) abriram caminho para o florescimento do comércio, desafiando a estrutura feudal com o crescimento de cidades. Este texto analisa como o desenvolvimento do comércio, impulsionado pelas Cruzadas, contribuiu para o declínio do feudalismo e a ascensão de um novo sistema, ainda em fase embrionária, que se distanciava das práticas feudais e se aproximava do que viria a ser o capitalismo.

As cruzadas, ao longo de dois séculos, teve seus momentos de sucesso, no entanto, não há dúvidas que suas passagens entre diversas regiões fez florescer o comércio. As feiras, por exemplo, eram eventos pontuais, algumas vezes no ano, entretanto, com a quantidade de sacerdotes, guerreiros e trabalhadores circulando, foi necessário o desenvolvimento e abertura de novas estradas, mais cidades começaram a ser interligadas e, o que era esporádico, tornou-se contínuo.

As cidades ficaram mais complexas, surgem instituições policiais, tribunais e banqueiros. O dinheiro, antes raríssimo, tornou-se uma realidade diante do famigerado escambo. A estrutura do feudalismo começa a abalar, a dinâmica do comércio exige o surgimento de uma nova classe de trabalhadores: os comerciantes. Como bem se sabe, a sociedade feudal era estática, dividida em três partes: Clero, nobreza e os servos. Não existia um meio termo para isso, entretanto, com o advento dos novos comerciantes, muitos servos conseguiram sua liberdade e foram às cidades para trabalhar com compra e venda.

Com o passar do tempo, a igreja e a nobreza perde seu poder para a incipiente classe média (nem era servo e muito menos nobre, algo no meio), as relações sociais se tornaram mais dinâmicas, o sistema feudal já tremia suas bases e um novo sistema caminhava para o que mais tarde seria o capitalismo, mas ainda não era nem uma coisa e nem outra, e é aí que a coisa muda.

Numa época onde o feudalismo declinava, o comércio era bem diferente dos tempos atuais. Uma pessoa livre podia ir a um banco buscar investimentos para abrir seu próprio negócio, mas era proibido ao banco cobrar juros. O empreendedor não podia acumular dinheiro, seu lucro seria o valor suficiente para sua sobrevivência e bem-estar, por exemplo, se a hora de um artesão custa R$ 10 e ele consumiu uma hora do seu dia para construir um vaso onde o material gasto foi de R$ 2, o valor final do produto não poderia ultrapassar muito além de R$ 12.

A questão do lucro se dá pelas características de uma sociedade com costumes baseados nos preceitos religiosos da igreja católica. O lucro se enquadrava no pecado da usura, cobrar juros era errado, imoral e muitas das vezes ilegal, não existia a ideia de investir o mínimo e lucrar ao máximo, o dinheiro que se ganhava era aquele necessário para viver. O mesmo vale para o empréstimo, se você emprestasse uma saca de tomates para alguém que, de alguma forma, perdeu sua plantação de tomate, você só receberia a saca de tomate e nada mais além, pois, ninguém tinha o direito de ganhar algo em cima de uma pessoa necessitada.

O comércio se desenvolveu e as cidades se tornaram maiores, e a divisão de trabalho ficou evidente. De um lado, os trabalhadores rurais, do outro os industriais, porém, a Peste Negra assolou no século XIV matando quase um ¼ da população. Com mão de obra escassa, os trabalhadores já se permitiam falar em questões salariais e de trabalho, agora aquelas pessoas que trabalhavam até a exaustão exigiam aumento no salário e dignidade, a nobreza e o clero pouco puderam fazer contra contra a união dos trabalhadores.

Muitas pessoas abriram pequenas fábricas e indústrias, já não eram servos, pelo contrário, tinham sua renda fruto do seu esforço. Estes trabalhadores se juntaram e criaram corporações e estas corporações seguiam regras que, nos tempos de hoje, são imagináveis.

Entre aqueles que faziam parte das corporações não podia haver concorrência, mas sim, solidariedade e fraternidade, os preços dos produtos e os lucros eram taxados e não podiam exceder àquilo estabelecido pelos trabalhadores, o comércio não era visto como algo para dar lucro até enriquecer, mas sim, como um serviço de assistência social prestado à população.

O desenvolvimento do comércio, impulsionado pelas Cruzadas, foi um fator crucial para o declínio do feudalismo e a ascensão de um novo sistema socioeconômico. As cidades se tornaram centros de atividade comercial e de transformações sociais, enquanto a classe dos comerciantes ganhava cada vez mais importância. As características do comércio na época, como a aversão ao lucro excessivo e a ênfase na assistência social, demonstram como esse sistema ainda estava em fase de desenvolvimento, distanciando-se das práticas feudais e se aproximando do que viria a ser o capitalismo.

Saulo Barbosa Santiago dos Santos – Guarda Civil, Professor de filosofia e Autista

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Redação

Redação

View Comments

  • O texto é correto, salvo raríssimas correções, e outras pouquíssimas omissões.

    Vejamos:

    “(...)O desenvolvimento do comércio, impulsionado pelas Cruzadas, foi um fator crucial para o declínio do feudalismo e a ascensão de um novo sistema socioeconômico. As cidades se tornaram centros de atividade comercial e de transformações sociais, enquanto a classe dos comerciantes ganhava cada vez mais importância. As características do comércio na época, como a aversão ao lucro excessivo e a ênfase na assistência social, demonstram como esse sistema ainda estava em fase de desenvolvimento, distanciando-se das práticas feudais e se aproximando do que viria a ser o capitalismo.(...)”

    Não é possível exigir do autor um aprofundamento rigoroso do tema, em tão pouco espaço, mas a transição do sistema feudal ao capitalismo, ou pré-capitalismo (fase mercantil de acumulação) não se deu sem a transgressão da regra que ele tentou veicular (a aversão ao lucro ou a acumulação).

    Nenhum outro sistema econômico deixou de experimentar a concentração acumuladora de riquezas, nem na Antiguidade, nem o Feudalismo, o que difere um sistema de outro é o modo de propriedade, a forma de organização do trabalho, e óbvio, as sócio reproduções daí advindas, e claro, o papel do valor (de troca e de uso) e da significação do valor ou padrões de troca (moeda).

    A restrição dos sistemas de troca feudais não afasta a noção de acumulação de riqueza pela exploração do trabalho, e na concentração de riqueza, porém, acerta o autor em diagnosticar que havia pouca dinâmica nessas relações.

    O grande salto para a ideologia do lucro foi o nascimento da teologia da prosperidade, que por sua vez alimentou, e foi alimentada (dialeticamente) pela Reforma de Calvino e Lutero.

    É aí que a porca torce o rabo: a substituição da venda de indulgências pela usura e o lucro.

    Ainda que se reconheça o impacto das Cruzadas (como de outros fenômenos humanos e/ou naturais, como doenças), o fato é que sem uma “ruptura ideológica” dramática, como a que foi causada pela Reforma, talvez o aumento dos fluxos de bens, recursos e pessoas, resultado das viagens das Cruzadas, não explicassem sozinhas a transição do feudalismo para o capitalismo.

    Esse viés fomentou um crescimento de concentração nunca antes imaginado até aquele momento, impulsionou as inovações tecnológicas (que levaram as grandes viagens marítimas), a busca por insumos (o conhecido caso das especiarias) e recursos minerais (ouro, prata), e os territórios que contivessem tais itens.

    Junto, a sofisticação dos sistemas financeiros (lembremos a crise das Tulipas é do século XVII - 1636/1637) e os movimentos de capitais acumulados impulsionaram o que seria, mais tarde, a Revolução Francesa, e depois, a Industrial.

    É mais ou menos como agora.

    Estamos no fim do capitalismo, e no início de algo que não sabemos bem o que é, só sabemos que não é mais capitalismo.

    É o fim da acumulação do excedente da mão-de-obra, expropriado em forma de valor, acumulado como capital, amortizado e reinvestido, e da “sobra”, o lucro.

    A produção industrial capitalista não mais justifica a existência dos valores fictícios (anti valores) acumulados e que se movem em um mercado frenético, sem nenhuma correspondência com as regras e leis capitalistas, e que reproduz estes anti valores sem nenhuma causa provável senão a auto alavancagem.

    O que falta para que consideremos o fim do capitalismo e o início do que virá?

    A ruptura “religiosa”.

    Douglas Barreto da Mata.
    Inspetor de Polícia/RJ

Recent Posts

Roberto Campos Neto e o terrorismo monetário

É papel do Banco Central administrar as expectativas de mercado, mas o que o presidente…

60 minutos ago

Museu do Trabalhador: Alfredo Buso conta como foi preso sem cometer crimes

Ex-secretário de obras de SBC, entrevistado da TVGGN anuncia absolvição do caso e lembra os…

1 hora ago

Justiça suspende julgamento de ex-policial que matou tesoureiro do PT

Defesa alega que comarca pode sofrer interferência devido à repercussão do assassinato e da influência…

2 horas ago

IPCA-15 desmente pirações estatísticas de Campos Neto, por Luís Nassif

No acumulado de 12 meses, percebe-se todos os grupos sob controle. A maior influência no…

2 horas ago

Congresso atende aos interesses do crime organizado ao proibir porte de drogas

À TVGGN, conselheira afirma que PEC das Drogas mantém monopólio de facções sobre a produção…

3 horas ago

Durante visita de Lula, Embraer anuncia investimentos de R$ 2 bilhões

Em São José dos Campos, Lula acompanhou a entrega de um jato comercial modelo 195-E2,…

4 horas ago