Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri
Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora
[email protected]

Nosso Lar 2 – Os mensageiros – as críticas e as controvérsias, por Dora Incontri

Trata-se de assunto complexo, com diversas camadas de apreciação – se não quisermos meramente falar do filme como um panfleto piegas

Nosso Lar 2 – Os mensageiros – as críticas e as controvérsias

por Dora Incontri

Não posso me furtar a focar um tema eminentemente espírita no artigo dessa semana, porque estão por toda parte os debates, as críticas e os elogios ao novo filme Nosso Lar 2 – Os Mensageiros, além de um expressivo comparecimento do público nos primeiros dias de exibição. Trata-se de assunto complexo, que apresenta diversas camadas de apreciação – se não quisermos meramente falar do filme como um panfleto piegas de um espiritismo aferrado ao religiosismo adocicado, que aliás não era o proposto por Kardec, o fundador.

O filme é inspirado pelo livro homônimo de Chico Xavier, o mais célebre médium brasileiro, falecido em 2002. Mas o que não-espíritas podem ignorar é que nem o médium e nem seus livros são unanimidade entre os espíritas que se dizem kardecistas. Enquanto o movimento hegemônico conservador, liderado pela Federação Espírita Brasileira, considera Chico um santo, ou na linguagem espírita, um Espírito elevado; outros movimentos e lideranças, progressistas, mais críticos, atribuem ao médium a catolicização do espiritismo no Brasil, que acabou afastando os seguidores de seu caráter mais racional e filosófico, como era proposto pelo educador francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, conhecido como Allan Kardec.

Entre os acirrados debates entre esses dois lados, há nos extremos aqueles que consideram as obras psicografadas por Chico, como sagradas, acima de toda análise crítica e os que as rejeitam como mera fantasia – e isso sobretudo se aplica aos livros de André Luiz, que descrevem a colônia espiritual Nosso Lar. Estou no meio desses extremos. Como Kardec, considero que todas as obras mediúnicas devem ser passadas pelo crivo da análise crítica, mas também aceito que Chico trouxe contribuições interessantes, porém longe de serem infalíveis. E que sim, essas contribuições podem ser embebidas num discurso às vezes excessivamente acrítico e piegas.

Nas discussões entre espíritas brasileiros, a própria noção de colônias espirituais é colocada em xeque, já que não houve essa ideia nas obras da Kardec, que tratou a vida feliz ou infeliz no Além, muito mais como estados de consciência, do que localidades de purgação ou felicidade. Coloco aqui um trecho de Kardec para o século 21, como prévia do meu livro que está indo para a gráfica essa semana, e que vai causar furores e controvérsias entre alguns e alívio e clareamento de conceitos entre outros:

“A tão debatida ideia de colônias espirituais, trazidas por médiuns norte-americanos e brasileiros, não aparece em Céu e inferno e em nenhuma outra obra de Kardec. Tudo no espiritismo por ele articulado se refere a estados mentais e não há materialidade em nenhuma visão do Além. Mas o corpo espiritual, com o qual os Espíritos se apresentam, é semimaterial e, no Livro dos médiuns, Kardec estuda casos em que Espíritos desencarnados são capazes de materializar objetos visíveis e palpáveis no Além, apenas com a força do pensamento. Dessa maneira, não é inverossímil que coletividades de Espíritos possam materializar cidades e locais de convivência, com características semelhantes aos que temos na Terra, como formas de organização temporária para os Espíritos em erraticidade. A percepção espiritual de vários médiuns nesse sentido viria confirmar um pressuposto lógico, que não contraria nenhum princípio básico do espiritismo.

A questão que se apresenta é que alguns cenários de sofrimento, descritos em regiões espirituais próximas à Terra, fazem lembrar o inferno cristão, com seus tormentos. E a narrativa de que as pessoas que praticam tal ou qual erro estão destinadas ao umbral, que veio substituir as ideias ora de purgatório, ora de inferno, pode levar a visão espírita a uma recaída num conceito de punição material. Então, mais uma vez é preciso lembrar que no espiritismo kardecista, tudo é sempre uma questão mental. Projetamos, criamos, concretizamos, desfazemos, desconstruímos tudo pela força do pensamento e as coletividades espirituais podem se reunir para o bem ou para o mal, segundo sua afinidade, e gerar formas-pensamentos, organizando um espaço espiritual. E quem disse que Dante não visitou mesmo alguns desses lugares tenebrosos, descrevendo-os evidentemente com a sua percepção subjetiva e com os condicionamentos da época?”

Ocorre é que se há uma espécie de materialização, às vezes chocante, de condições de vida pós-morte nas obras de Chico Xavier/André Luiz, na interpretação simplista e cinematográfica dos dois episódios de Nosso Lar (de 10 anos atrás e o de hoje) a coisa pesa demais, feita ainda com um mau gosto à toda prova. E não sei o quanto se deve isso à falta de recursos, criatividade ou senso estético mesmo. Pessoas se arrastando na lama, luzinhas que parecem enfeites de Natal, um bosque das águas absurdamente mal-feito… tudo bastante constrangedor. Uma produção amadora. Uma espécie de céu de papelão.

E nesse contexto, o que é pior, o que se dá é uma ideia de punitivismo materializado no plano espiritual. E se devemos afastar das tradições espirituais essas ideias que reforçam culpa, punição, autodepreciação e depreciação do próximo, um filme como esse reafirma todos esses estereótipos, que estão presentes nos próprios livros do Chico.

Outra coisa que chama a atenção – já falei disso numa crítica ao primeiro Nosso Lar – é o quanto atores e seus diretores não sabem interpretar pessoas do bem. As falas, o tom, a expressão são sempre piegas, melífluos, sem nuanças, sem humanidade. Edson Celulari escapou disso. Como bom ator, soube ser simpático, bom, sem exageros. Esse é um problema que se dá em outros filmes, até hollywoodianos. Lembro do antigo Os Dez Mandamentos, com Charlton Heston no papel de Moisés. Enquanto ele esteve como irmão do faraó, era uma pessoa viva e espontânea. Quando se torna o profeta da terra prometida, assume essa voz mansa e irreal e a expressão extática e inumana. Nesse sentido, um elogio que faço aqui à série The Chosen, que está sendo veiculada na Netfllix, onde temos um Jesus que ri, pisca o olho, é simpático, próximo, acolhedor… enfim um ser humano pleno.

Quem se dedicar a ler o livro Os Mensageiros, no original, verá que alguns defeitos punitivista estão lá, mas também observará que se trata de uma obra muito mais elaborada, muito mais sutil, com várias análises psicológicas muito mais interessantes que as do filme.

Ainda assim, sobram algumas coisas boas na história contada por Wagner de Assis: a mensagem de que temos nossos Espíritos protetores, que fazem tudo pela nossa felicidade; a ideia de que o amor redime todos os pecados e de que todos se iluminarão, ninguém ficando fora do despertar para o bem – princípios básicos do espiritismo kardecista, que apesar dos pesares, ainda permanecem no espiritismo mais religioso que se desenvolveu no Brasil. Momentos em que essa relação amorosa se dá no filme, em que crianças demonstram sua mediunidade, em que se dão cenas de acolhimento e perdão – podem emocionar pessoas sensíveis. Nem tudo está perdido.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri

Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora

12 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Por convicção adotei o espiritismo como filosofia de vida, ciência que trata da natureza, da origem e do destino dos espiritos, bem como de suas relações com o mundo corpóreo, nunca como religião.Se alguém me dissesse que ele era perfeito eu não o seguiria,.

  2. Gostei do texto. Chega a parecer uma ousadia e é na medida em que desnuda as vestes do “Espiritismo Brasileiro”. Chegamos a um “Ser ou não Ser?”, embora com mais propriedade. Olhar para o século XXI com um olhar no século XIX é complexo, mas Dora ousa. Parabéns.Creio que devam mesmo existir várias explicações e posicionamentos a respeito do “Mundo Espiritual” até que possamos colher novas e interessantes “descobertas”. Ao que parece é um anacronismo, pois a Ciência como um todo anda e o “Espiritismo” se embota.

  3. É mais um texto para refletir ,entretanto entendo que a doutrina dos espiritos tem o propósito de nos tornarmos seres humanos melhores,o próprio evangelho segundo espiritismo está repleto de passagens que nos religa ao nosso “Criador”, também nos propondo uma visão holistica de nós mesmo para buscarmos um Reino dentro e não fora de nós, então não concordo quando fala de reliogismo piegas . E sim portador de uma linguagem silenciosa propria de corações sensiveis ,isso sim é visto nos livros de André Luís .Kardec no livro dos médiuns nos deu um roteiro inicial excelente mas os livros psicografados por Chico Xavier e nas mesas mediunicas que observamos as diversas nuancias da mediunidade.O filme passa uma mensagem positiva esse é o ponto

  4. Ainda precisamos de filmes assim pra entendermos um pouco de espiritualidade, eu assisti, gostei, achei tbem como a Sra, um pouco fantasioso, mas o importante é o despertar, estamos todos perdidos nesse mundo da matéria, estagnados, e essas discordâncias então nós afastam mais ainda de tudo, sou uma simples dona de casa, casada, 2 filhos 1 netinho, cuido da mãezinha com alzeihemer, apesar do estudo que a senhora tem, não me sinto nem um pouco diferente, carne, osso, e tenho minha fé inabalável em Cristo,, graças ao Chico Xavier, que conseguiu me mostrar que a vida continua através dos seus livros psicografados, exagerados talvez, mas que salvou minha vida.
    Abraços

  5. Dora tem razão.A filosofia espírita anda tão corrompida que pessoas espiritualmente esclarecidas estão voltando às práticas escravizantes impostas pelas religiões tradicionais. O mantra pedir, obedecer, servir, orar, clamar, se humilhar e, principalmente, temer a “deus”, jeová, alá, ao pastor, ao inferno, e “outras mumunhas” voltaram à moda com força total. As pessoas parecem embotadas, sem rumo, à procura de vantagens “espirituais” e materiais. A caridade virou insulto, espiritualidade fora da religião é coisa do demônio e paranormalidade é doença. Quem puder que se preserve.

  6. Pseudossábios que Kardec falava? Esse pessoal quer reinventar a roda. Parece crítica mas não passa de discurso uspiano com pose de profundidade. Não gosto mas vou pegar carona na onda. Haja paciência!

  7. Pseudossábios que Kardec falava? Esse pessoal quer reinventar a roda. Parece crítica mas não passa de discurso uspiano com pose de profundidade. Não gosto mas vou pegar carona na onda. Haja paciência!

  8. Considerado que o Espiritismo é uma Doutrina em evolução, não me surpreende o fato de, num primeiro momento, com Kardec, haver uma apelo forte das ideias racionais e lógicas até então apresentadas, estudadas e compartilhadas. Passados algum tempo, como toda obra bem trabalhada destinada a revelar algo novo tem um impacto na humanidade, e de fato a humanidade evoluiu, haveria de ser oportuno, cedo ou tarde, que o espiritismo, através de seus trabalhadores encarnados e desencarnados, abordasse temas que dão ênfase mais às questões morais. Não se trata aqui, então, de ir contra a racionalidade de Kardec, mas complementar e dar equilíbrio às ideias apresentadas, sempre proporcionais e razoáveis à evolução da humanidade. Outras obras de Chico abordaram questão racionais e lógicas de extrema complexidade, tais como Evolução em dois mundos e Sexo e Destino, por exemplo. Não se trata, na minha humilde opinião, de dois extremos que não se comunicam: razão e lógica versus moral e religião não é um conflito, mas diferentes pontos de vista de um mesmo objeto.

  9. Prezada Senhora, permita-me dividir tua crítica em duas partes.
    A que diz respeito à visão do Espiritismo “Tradicional” e Espiritismo “Progressista” entendo os argumentos e embora não compartilhe algumas teses, aceito a discussão e acho muito boa para a Doutrina.
    Quanto ao filme tenho muitas restrições, começando por tratar de um filme baseado num livro, sendo comum a crítica que o livro é melhor que o filme. O que é obvio! Lembro quando li Os Miseráveis, com 1500 páginas e demorei quase 2 meses para ler e depois vi o filme de 2:50 h. foi decepcionante.
    Acredito que aconteceria o mesmo se o teu Livro “Para entender Kardek” fosse para o cinema.
    Outra questão é a recuperação da Cultura, que praticamente foi dizimada no governo do inominável, para mim qualquer obra produzida após esse desastre deve ser valorizada pelo esforço e perseverança dos realizadores.
    Com teu enorme bom senso, a Sra listou uma série de “aspectos bons” que estão no filme, e apontou erros doutrinários e erros tecnicos.
    Quanto aos doutrinários já falei nas primeiras linhas, mas sobre os técnicos, me perdoe, faltou generosidade.
    Os atores estão longe de serem ruins, os efeitos especiais são perifericos diante dos “aspectos bons” apontados pela Sra.
    Esta tua observação dos efeitos especiais me lembra quando fazíamos apresentacao em laminas de transparencia e depois chegou o power point, e o meio passou a ser mais encantador que o conteudo.
    Por fim, essa obra que chegará para muitas pessoas espíritas e não espíritas será jogada no umbral pelo punitivismo, tão condenado nessa crítica.
    Luiz Costa – SP
    esse texto tambem foi postado no video do YOUTUBE.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador