O edifício de Didier Raoult está finalmente ruindo, por Christian Lehmann

Desde março de 2020, as irregularidades nos estudos publicados por Didier Raoult têm sido denunciadas na França e no exterior.

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O edifício de Raoult está finalmente ruindo

por Christian Lehmann

(traduzido por Barbara Serrano)

O jornal de investigação Mediapart revela que, há alguns anos, o Instituto Hospitalar Universitário de Marselha (IHU) vem conduzindo experiências humanas fora de qualquer estrutura legal no tratamento da tuberculose, com graves consequências médicas para os pacientes. Baseado somente em sua intuição, Didier Raoult usou antibióticos pouco eficazes contra o bacilo de Koch, com graves efeitos colaterais, em pacientes que sofreram complicações e poderiam ter contaminado pessoas próximas se não tivessem sido devidamente tratados. Desde o início da crise da Covid, foram necessários dezoito meses – durante os quais os denunciantes, uma vez superado o choque, tentaram alertar as autoridades responsáveis pela saúde pública na França, enfrentando assédio, ameaças, intimidação e ataques legais – para que a proteção de chumbo que encobre as irregularidades no funcionamento da IHU, sob a égide de seu diretor, finalmente rachasse.

Nesses dezoito meses, a teimosia de Didier Raoult e sua incapacidade de admitir que estava errado convenceram um grande número de pessoas desavisadas, influenciadas por políticas sem base científicas e gurus conspiradores, que havia tratamentos precoces para a Covid e que uma conspiração mundial das elites havia proibido seu uso, com a cumplicidade da classe médica.

Nem os estudos que revelam, um após outro, a ineficácia da hidroxicloroquina, nem as advertências sobre a falta de rigor metodológico das comunicações desleixadas da IHU chegaram realmente ao público, tanto que a IHU e seu fundador foram protegidos por uma rede política e midiática local e nacional. O lamentável clichê que Didier Raoult, o maior especialista em doenças infecciosas do universo foi vítima dos ciúmes dos homens parisienses guiados pelo Ministério da Saúde e pela «Big Pharma», foi repetido ad nauseam em todos os canais da mídia francesa e estações de rádio da direita radical. Todos aqueles que esperavam tirar proveito com esta pandemia se envolveram: Michel Onfray, Bernard Henri-Lévy (falsos filósofos), Florian Philippot, Nicolas Dupont-Aignan (políticos de extrema direita), Louis Fouché (médico conspiracionista), Martine Wonner (deputada) e outros elogiaram o grande pesquisador que lutava sozinho e corajosamente contra uma horda liliputiana de aborrecimentos administrativos.

Enfrentar o ódio

No Brasil, o relator da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid concluiu seis meses de investigação e recomendou o indiciamento de Bolsonaro pela “defesa incondicional e reiterada do uso de […] hidroxicloroquina […] mesmo após estudos científicos, a OMS e outras autoridades sanitárias em todo o mundo demonstrarem a ineficácia deste tratamento. A veiculação de notícias falsas […] contribuíram para que o objetivo negacionista fosse alcançado. (…) E matou no Brasil muitas pessoas, cujas mortes poderiam ter sido evitadas.”

No Brasil, um presidente agindo de forma ditatorial fechou o país em seu delírio negacionista, adiando a vacinação, inundando a população com “kits Covid” ineficazes com a ajuda de redes de seguros privados forçando os médicos a prescreverem HCQ e azitromicina. E é do Brasil, ainda sob o jugo de Bolsonaro, que chegou a primeira grande decisão legal, enquanto na França, há meses, os teóricos da conspiração acusam os profissionais de saúde de “eutanásia com Rivotril”, de espera criminosa para o tratamento de pacientes, de genocídio vacinal. Médicos e pesquisadores são ameaçados com a guilhotina num artigo de jornal conspiratório, que o próprio Didier Raoult, agora condenado a aparecer apenas em Hanouna e Morandini (programas televisivos de infoentretenimento de baixa qualidade) enquanto espera a Rádio Courtoisie (rádio de extrema direita), aponta para seus fanáticos a fim de despertar o ódio. Há meses, portanto, sem qualquer intervenção das autoridades públicas, os teóricos da conspiração vêm ameaçando os médicos com um “novo julgamento de Nuremberg”, ao mesmo tempo que elogiam um homem responsável pela experimentação humana ilegal.

Como chegamos nisso?

Desde março de 2020, as irregularidades nos estudos publicados por Didier Raoult têm sido denunciadas na França e no exterior. Não pelos órgãos responsáveis pela proteção da população contra tais abusos, mas por jornalistas, médicos e pesquisadores que se encarregam de enfrentar o ódio e as ameaças de morte de um Instituto que há muito tempo se libertou de qualquer barreira moral. Os canais de notícias 24 horas e os apresentadores em busca de um burburinho convidaram a histriônica desvairada para seus sets para aumentar sua audiência. E nem o Estado nem as agências de saúde pública puseram um fim a esta máscara criminosa.

Raoult coloca em risco seus pacientes

Mesmo quando os primeiros estudos de Raoult estavam sendo questionados, o Presidente da República viajou para Marselha para “dar uma boa risada” e um cheque em branco a “um grande cientista” que ele queria “colocar em seu bolso”. O Diretor Geral de Saúde Pública, Jérôme Salomon, fez vistas grossas ao fato de que os julgamentos foram conduzidos fora da legalidade. O promotor público de Marselha rejeitou revelações, inclusive sobre testes ilegais realizados em menores…

Quando, nas colunas do Libération, revelamos que a IHU havia contornado o sistema de hospitalizações diárias para prescrever uma grande quantidade de HCQ, ao som de dezenas de milhões de euros – acusações que Didier Raoult, em seu modo Trump, qualificou imediatamente como notícia falsa, tomando o cuidado de não processar por difamação -, quando revelamos que o então diretor da Agência Nacional de Segurança dos Medicamentos havia alertado o diretor do Fundo Nacional de Seguro de Saúde, quando o Senador Bernard Jomier, o único a ter confrontado Didier Raoult e suas mentiras em uma comissão de inquérito, fez uma solicitação por escrito ao Ministério da Saúde pedindo que fosse iniciada uma investigação, nada foi feito.

Enquanto Didier Raoult está tentando impor seu sucessor à frente da IHU após ter obtido a proteção da Universidade de Marselha (o que claramente significa que o dinheiro dos nossos impostos está sendo usado para travar uma guerra legal contra os pesquisadores que estão tentando denunciar seus erros), este novo caso revela que, pelo menos desde 2017, foram feitas advertências, mas que nem a ANSM nem a Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa (Spilf) tinham dado seguimento a ela. A primeira recusou a autorização para este teste ilegal, mas não fez nada para suspendê-lo; a Spilf, alertada, enviou uma carta e ficou calada depois de ser “aconselhada” a não interferir “considerando a qualidade de suas equipes”.

Se este novo caso é revelado é porque a perda de influência de Didier Raoult, após sua aposentadoria da Hospitais Públicos de Marselha levou certos médicos internos a ir além do silencio estabelecido a fim de se livrarem de um fardo, mesmo que isso signifique arriscar “perder tudo denunciando esta situação”. Um deles disse: ‘Didier Raoult é um reinado de terror’. Mas a última gota d’água foi ver dois pacientes acabarem em cirurgia de emergência por complicações renais que poderiam ter sido evitadas. Eles são romenos e nunca irão apresentar queixa. Eles nem sequer suspeitam que tenham sido usados em testes proibidos. Estou exausto de constatar que ele coloca em perigo os pacientes impunemente, apresentando-se à opinião pública como um salvador”.

A primeira indicação de que o edifício está rachando: Philippe Douste-Blazy (médico e ex-ministro da Saúde), membro da diretoria da IHU que já foi criticado por sua participação no « documentário » negacionista Hold-Up, acaba de se explicar no Senado Público sobre a acusação de “populismo científico” feita pelo comitê de ética do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Cientifica).

O comitê de ética do CNRS fez a seguinte observação: “A deriva populista da ciência também pode ser obra de um político. […] Assim, Philippe Douste-Blazy, ex-ministro e professor de saúde pública, e Christian Peronne, professor de medicina, lançaram uma petição online no início de abril de 2020 pedindo ao governo para acelerar os procedimentos de disponibilização da HCQ para tratamento e coletaram quase 600.000 assinaturas! […] É preocupante que a escolha de um tratamento possa ser decidida pela opinião pública com base em uma petição ou uma pesquisa e que as decisões políticas possam ser tomadas com base em crenças ou argumentos irracionais, apelando apenas para o medo ou a emoção.”

O ex-ministro da Saúde (que Didier Raoult esperava colocar à frente da OMS) apenas reconhece que ele “era desajeitado”, e descuida da questão explicando que em nenhum momento ele quis promover o HCQ. Ele mente quando continua afirmando que os estudos preliminares de Raoult mostraram que este “antiviral” (HCQ não é um antiviral) foi eficaz no transporte nasal precoce do vírus, e explica com um tom sério que ele ficou simplesmente horrorizado ao ver um Ministro da Saúde proibir uma droga: “Isso nunca tinha existido antes na França… Os médicos podem prescrever as drogas que quiserem”. Como disse o Dr. Alexandre Bleibtreu no Twitter, “desajeitado é quando você quebra um copo. Quando você toma uma posição várias vezes em favor de um tratamento sem comprovação, quando você faz todos os programas de TV repetir as bobagens de Raoult, quando você participa de filmes de conspiração, isso é chamado de perversidade”.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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