O coronel fantasma
por Fernando Horta
Marcelo Branco da Costa, o “coronel Blanco”, esteve na CPI no dia de ontem (04/08) numa condição estranha: ele era um “coronel fantasma” na estrutura do Ministério da Saúde. O mesmo ocorre com o depoente de hoje, Aírton Cascavel. A mesma situação ocorreu com Carlos Wizard e, pasmem, Célia Regina, a servidora nomeada por Ricardo Barros, também atuou como “fiscal do contrato” da covaxin como “fantasma”, ou seja, antes de ser formalmente nomeada para nada.
Este uso de “operativos” fora de função e sem registro oficial para determinadas ações pode parecer um “erro”. Um atrapalho do ministério. Uma demonstração de incompetência ou de “bagunça” como alguns senadores da CPI costumam mencionar. Longe disso. Esta é uma prática conhecida por setores de inteligência, especialmente inteligência militar. Essa é uma prática descrita nos manuais de inteligência desde a guerra fria. O objetivo são três: (1) quebrar as cadeias burocráticas de comando e de informação com indivíduos “confiáveis”, (2) criar dificuldade de rastreio e de responsabilização por ações ou inações sobre estes “operativos fantasmas” e (3) criar uma linha de ação confiável e efetiva diretamente entre os chefes e o “operativo fantasma”, efetivamente pulando as linhas de informação burocrática.
Antes de se falar em “bagunça”, é preciso reconhecer que esta é uma prática comum nas estratégias de inteligência em todo mundo e foi copiada por manuais no Brasil a partir da década de 70. O coronel Blanco e tantos outros passam pelos passos descritos no manual: primeiro a nomeação oficial quando se precisa dar legitimidade ao operativo frente a outros atores e, depois, a exoneração formal do cargo, MAS A MANUTENÇÃO REAL DE SUAS FUNÇÕES. Do ponto de vista externo, os atores reconhecem no operativo alguém que “fala pelos chefes”. Do ponto de vista das responsabilizações internas, criam-se as desculpas que os senadores do governo a todo momento usam: “o coronel Blanco já não era mais servidor”, e, com isso, estabelece-se um problema para a punição e responsabilização, ao mesmo tempo que permite as ações ilegais ocorrerem por dentro das instituições.
Esta prática seguramente poderá ser encontrada em outros ministérios como o ministério da saúde e, se houver investigação, vão encontrar o mesmo modo de operação militar em outras partes do governo, notadamente no ministério do meio ambiente e nas secretarias de comunicação. É a substituição das relações institucionais controladas pela lei para as relações institucionais que respondem somente às relações clientelistas da farda verde-oliva. E toda a responsabilização a que um militar está sujeito está limitada pela amizade dele para com seus superiores.
Estas práticas precisam ser compreendidas de forma mais profunda e, a partir delas, que se estabeleça uma quarentena de – no mínimo – dez anos para um militar poder se candidatar ou exercer qualquer função pública no Brasil. O acesso a essas malhas sórdidas que existem em nos sistemas de segurança de (praticamente) todos os países não pode conviver com o exercício legal de funções civis. É um enorme espaço para corrupção, autoritarismo e assédio dos interesses militares privados sobre a coisa pública. Tudo em prol do “nacionalismo”, é claro.
Antes de “bagunçado” o ministério da saúde, a polícia federal e outros pontos infectados pelos militares tornaram-se braços instrumentalizados pelo fascismo autoritário e sobre os quais o poder civil tem dificuldade de exercer seus controles e punições. Antes de “incompetente” o governo Bolsonaro é corrupto, como aliás todo governo autoritário no Brasil foi, a despeito da memória que se criou sobre eles.
O mundo civil republicano precisa se proteger do mundo militar. Especialmente das táticas militares que – sustentadas por civis – atentam contra a existência das instituições. Já se deu muito espaço para o fascismo de Jair Bolsonaro. A partir de agora, que as instituições não possam mais dizerem-se “esperançosas” de que Bolsonaro venha a abrandar seu discurso. Ele segue não apenas planejando, mas trabalhando arduamente pelo golpe. Trabalhando pela supressão das instituições. Em plena luz do dia. Transmitindo publicamente em “lives” pela televisão aberta. No futuro, não será possível que as autoridades que têm poder para parar isso dizerem que “não tinham como saber”. É claro como água. Lavar as mãos, agora, é crime qualificado.
Fernando Horta – Professor desde 1996, tendo atuado em todos os níveis, desde pré-escola até universidade. Formado em história pela UFRGS com mestrado em História das Relações Internacionais pela UnB. Doutorando em História das Relações Internacionais na UnB.
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