Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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A crônica e O Escafandro e a Borboleta, por Maíra Vasconcelos

Uso da ficção para dar voz a um fato familiar. E “O Escafandro” é, ante tudo, o desejo de falar, de se expressar, de contar sobre uma vida.

A crônica e O Escafandro e a Borboleta

por Maíra Vasconcelos

A literatura persiste em nossa época porque um dos seus horizontes
é justamente contar como sobrevivem os homens nesta intempérie que não tem fim
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Ricardo Piglia

Há alguns meses não escrevo crônicas para o jornal. Leio, agora repousado sobre essa pequena mesa, “O escafandro e a borboleta”. Autobiografia do jornalista e escritor Jean-Dominique Bauby, que, diria, trata-se do desejo do corpo em se comunicar. O filme homônimo, de 2007, talvez seja mais conhecido do que o livro. Mas leio “O Escafandro”, especificamente, porque tento terminar de revisar essa possível primeira novela que escrevo, há uns três anos. Pese a ficção, está baseada em um fato familiar ocorrido com uma tia paterna, que também perdera as possibilidades de fala: entrou em seu casulo. E isso do casulo e da metamorfose, aprendi lendo “O Escafandro”.

Jean-Dominique, após um acidente vascular cerebral, aos 43 anos, entrou em coma e, ao acordar, havia perdido a fala e toda a mobilidade do corpo. Assim, permaneceu por mais de um ano no hospital, segundo ele, em metamorfose profunda. Jean-Dominique mantinha o que chamava de “guarda-comida” imaginário, imaginava e descreve em seu livro o que poderia comer já que, realmente, nada mais mastigava.  

Escrevi e reescrevi essa crônica várias vezes. Entre a difícil escrita de minha primeira novela, que com os anos fica mais difícil e não o contrário, e a leitura de “O Escafandro”, estabeleço um laço principal entre as duas leituras: a necessidade de comunicação dos personagens. Uso da ficção para dar voz a um fato familiar. E “O Escafandro” é, ante tudo, o desejo de falar, de se expressar, de contar sobre uma vida.

Da voz de Jean-Dominique, entre a imagem do escafandro e da borboleta, pode-se extrair, ainda que seja contraditório, muita vida. Há partes divertidas e corriqueiras, entre lembranças de quando ele fez a barba do pai, ou quando viajou com a sua esposa, à época sua namorada.

O assunto que se cruza entre “O Escafandro” e a novela que escrevo é o estacionamento do corpo em um estado inamovível. Expressar o que é viver a experiência de ter um familiar que se emudece ao nosso lado. A tia e a sobrinha da novela, ainda que personagens criadas a partir de minhas experiências, são a expressão do desejo de se comunicar, de falar. Na história, a sobrinha escritora, escuta e transcreve o pouco que sua tia lhe fala, estando imóvel numa cama de hospital. Ela anota cada palavra, não tão fielmente, pois acrescenta também outras palavras que sua tia não termina de dizer. Assim, os relatos formam uma ficção da qual não se pode sair entre as duas vozes.

Após tanto tempo sem escrever no jornal, tenho agora a imagem de um homem dentro de um escafandro, que deseja, dali, sair borboleta. Apesar de não perceber nenhum tom de sacrifício, sabemos que cada palavra “dita” por Jean-Dominique custou muito; conseguidas a partir de um sistema desenvolvido por sua fonoaudióloga. Quanta pretensão tentar vencer o estado imóvel do corpo, e, enfim, comunicar. Quantas pretensões guarda a literatura.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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