A festa, por Lúcio Verçoza

Chegamos quando a noite beliscava o dia. Assim como nós, vinha gente de vários lugares. Estavam aguardando mais uma turma de longe para começar.

Foto Sebastião Salgado

A festa

por Lúcio Verçoza

Eu queria contar uma história que fizesse o mundo parar para ouvi-la, e que depois de escutá-la o mundo girasse em sentido contrário. Mas Saúba disse que primeiro o mundo precisa de ouvidos, e que para criar ouvidos às vezes é necessário se pintar de fogo.

O sereno da madrugada passava por dentro das barracas de lona preta. Maria do Ó estava deitada no chão de terra batida. Sonhava que estava dormindo debaixo de um pé de umbu. O vento atravessava as frestas da lona preta. Maria do Ó sabia que ainda não era hora de acordar com o frio, precisava continuar sonhando que estava debaixo de um umbuzeiro.

Havíamos chegado ao acampamento no dia anterior. Albino guiou a carroça. A burra sem nome nos levou sem saber o destino. Nós também desconhecíamos o destino. O balanço da estrada fazia sacolejar os órgãos da minha barriga. Estávamos sentados na tábua da carroça. A mulher de Albino passou a viagem calada, parecia que tinha vergonha de falar. Mas se abrisse a boca sei que deixaria nossas bocas caladas, como lábios de bobos que não sabem ao certo o que falar. Por isso acho que ela preferia ficar em silêncio. Sua voz era muito preciosa para ser gasta naquela carroça longe de tudo.

Chegamos quando a noite beliscava o dia. Assim como nós, vinha gente de vários lugares. Estavam aguardando mais uma turma de longe para começar. A turma chegou de manhã. Eu não havia conseguido dormir. Tinha passado a noite conversando com Saúba e Albino ao redor da fogueira.

Antes do meio dia saímos em marcha, em fila indiana. Carregávamos foices, enxadas, facões e estrovengas. Me deram uma enxada de cabo largo. Seguíamos em direção aos roçados comidos pelo gado do fazendeiro. Ele soltava o gado na roça para acabar com a colheita dos acampados. Tinha colocado cercas e porteiras em terras sem dono, terra que por ser de ninguém era de todos.

Na margem da cerca chegaram jagunços armados montados em cavalos e uma caminhonete cabine dupla, se aproximaram a toda velocidade. Não sei ao certo o nosso tamanho, mas parecíamos uma multidão. Sáuba pulou a cerca e partiu para cima dos jagunços, estava armado de uma estrovenga. Albino e Maria do Ó ordenaram que ele recuasse, mas parte da multidão o seguiu. Era irreversível. Os jagunços armados de pistolas e revólveres recuaram em disparada. O fazendeiro também correu, sua caminhonete cantava pneu na terra seca e levantava poeira. Foi a primeira vez que vi cavalos armados e caminhonete temendo pessoas. Não havia imprensa, não havia celular com câmeras; apenas nós, o fazendeiro e os jagunços armados.

Albino fez um discurso antes de quebrar a corrente da porteira. O sol estava no alto. A multidão o escutava atentamente. O momento da machadada de Albino sobre a corrente da porteira, a luz do Agreste, os rostos atentos e vibrantes; nem Sebastião Salgado teria conseguido captar o significado daquele instante. Somente quem estava lá, somente quem era integralmente parte.

Tratamos de plantar sementes na terra reocupada. Mais tarde, fui escalado para um dos grupos que tentaria abater o gado selvagem. Havia um paredão de terra íngreme, tentariam tanger o gado para lá. Com o gado selvagem encurralado entre o paredão e os cavalos, tentaríamos golpeá-los para o abate. A noite foi chegando e nada do gado. Eu não sabia se temia mais a tocaia dos jagunços do fazendeiro ou ser atropelado pelo gado selvagem. Estávamos com armas rústicas: facas, enxadas e estrovengas. Se houvesse entre nós um toureiro, talvez pudéssemos usar algumas de nossas bandeiras vermelhas para escapar do atropelamento. Mas não foi necessário, já era noite quando ficamos sabendo que dois bois tinham sido abatidos.

Conheci o vaqueiro que os caçou no interior da caatinga, era um garoto de doze anos de idade. Ele era das ilhas do São Francisco e disse que perseguiu o gado selvagem por dentro da vegetação espinhenta. Quando finalmente emparelhou com o gado, agarrou seu pescoço e deslizou sua amolada faquinha por sobre a nuca do animal. O bicho já caiu morto. Repetiu o feito duas vezes. Saiu da caatinga com as roupas rasgadas, com arranhões pelo corpo e com o cavalo ofegante. Eu mesmo vi a camisa rasgada e os cortes pelo corpo.

Fizemos várias fogueiras para assar toda aquela carne. Foi realmente uma grande festa. Leandro me contava os detalhes da caçada. Seu Sanfoneiro, o idoso que nunca perdia a esperança e a convalescença, tocava sua sanfona de uma nota só. Enquanto isso o velho Saúba comia o pedaço mais macio do gado: os rins. Saúba não tinha dentes, mas saboreava a parte mais macia do gado assada na brasa como quem aprecia uma estrela cadente. Eu vi uma estrela cadente entre suas gengivas.

Lúcio Verçoza – Sociólogo, professor universitário e autor do livro “Os homens-cangurus dos canaviais alagoanos: um estudo sobre trabalho e saúde” (Edufal-Fapesp, 2018).

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador