Categories: CrônicaCultura

A vida que há VI, por Maíra Vasconcelos

A vida que há VI, por Maíra Vasconcelos

Tudo nela estava em silêncio, como se fosse possível nunca mais falar. Diz minha vizinha que a mudez é confortável durante os dias de sangue pisado. Fica toda folgada no sofá sem pronunciar um A. Até acha que sua voz não sairá nunca mais, mas não se importa, o importante é não falar. Depois, acontece o retorno da voz, quando o sangue pisado já desceu o corpo inteiro.

Não ir à padaria, nem atender o interfone –  pavorsinho da voz humana.. ai ai, só posso escutar músicas e cantos. Fico chique e seletiva. Não atendo ligações, e assim também evito o espanto de mim mesma – iiihh, o celular deu pane, finge alarme de atriz quando os vizinhos perguntam porque faltou à reunião do condomínio.

Minha vizinha diz que o melhor é não sair de casa: não se deve forçar a voz. É como ficar presa dentro de si mesma, igual pássaro dentro da gaiola. Se sai algum canto, é melancólico de dar dó. Igualzinho filme de arte. Tudo acontece no tempo da tristeza reflexiva: de va g a a a a r r r r  até quase parar – estou paradinha, prefiro não dizer meu próprio nome. O único que sai dela é o sangue pisado. Sai sai até que um dia não sairá mais.

Passada a varrição dos dias de sangue pisado, minha vizinha aparece. Fala qualquer coisa que se pareça a uma voz com vontade de viver. Disse que nesses dias entra tudo de toda gente nela mesma, e apenas sai sai o sangue pisado, até que um dia não sairá mais. Aquela coisa meio marronzinha, bonita de vida que só. Meio triste, meio alegre, tudo junto. Ela enxerga a vida dividida igual ao corpo da mulher. O corpo que tem o sangue pisado e o corpo que nunca mais irá esperar pelo sangue pisado. Parece que divide a gente em duas, já percebeu? E melhor nem olhar no espelho, porque aí divide tudo que não há olhos que chegue. Igual aquele livro da mulher partida, sabe? Olha quantas numa só. Quem disse isso: unidade do ser? Perguntou sem esperar resposta e disparou a rir, a minha vizinha.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

Recent Posts

Trump considera sanções contra países que deixem de usar dólar

Taxação cambial, tarifas e restrição a exportações estão entre punições avaliadas pela equipe do candidato…

11 horas ago

Governo federal confirma continuidade da homologação de terras indígenas

Força-tarefa composta por ministérios, Funai, AGU e Incra busca acelerar processo; quatro processos devem ser…

12 horas ago

A conexão Nuland–Budanov–Tadjique–Crocus, por Pepe Escobar

A população russa deu ao Kremlin carta branca total para exercer a punição máxima e…

12 horas ago

Elon Musk vira garoto propaganda de golpe que pagou por anúncio no X

Golpe inventa uma nova empresa de Elon Musk, a Immediate X1 Urex™, que pretende enriquecer…

12 horas ago

Governo Milei segue com intenção de lançar ações do Banco de La Nacion no mercado

Apesar da retirada da lista de privatização, governo Milei reforça intenção de fazer banco oficial…

12 horas ago

Prêmio Zayed de Sustentabilidade abre inscrições globais

Prêmio para soluções sustentáveis passa a aceitar inscrições em português; fundos de premiação chegam a…

13 horas ago