do Extra
Carta para a filha que ainda não nasceu
por Felipe Pena
Amada Maria Antonia,
Perdoe o pai que escreve antes do nascimento, antes da luz, antes até da concepção. Perdoe o pai ansioso, aflito, insone. Perdoe o pai que te batiza antes da ultrassonografia.
Se preferir, posso te chamar de Antonio. Ou Antonio Maria, mais que um nome, uma homenagem. A tua mãe certamente concordará com a escolha.
O assunto é urgente, o tempo é curto e a vida não anda fácil. São tempos temerosos. Rasgam votos e carteiras de trabalho. Queimam direitos e benefícios. E você nascerá em um país onde ninguém se aposenta mais.
Sofremos um golpe e preciso te contar. Mas há muito mais pra dizer.
Tenho medo de não estar aqui e as frases desaparecerem com as lembranças. Então serei breve e irei diretamente ao que interessa.
Só algumas recomendações:
Se o mundo disser que está errada, não acredite, mas desconfie. E quando a desconfiança te fizer mudar de ideia, desconfie da própria mudança. O nome disso é instinto.
Instinto e razão podem parecer opostos, mas são apenas complementares. Use-os em combinação e com intensidade. O nome disso é inteligência.
Inteligência não é sinônimo de superioridade. Inteligência é compartilhamento, é solidariedade, é empatia. Inteligência tem vários nomes, mas o sobrenome é sempre emoção.
Emoção é o que mais desejo para os teus dias. Sorrisos e prantos são igualmente bem-vindos. Não economize. As risadas serão efêmeras. As lágrimas serão perenes. Essa desproporção é o que nos torna humanos.
Humanidade e humildade não são aliterações por acaso. Aprenda outros idiomas e descobrirá a mesma relação, mas jamais acredite que o aprendizado terminou. O segredo é não parar de aprender.
Haverá amores e paixões. Difícil separá-los. Mas será mais fácil se souber que nos apaixonamos pelas qualidades e amamos apesar dos defeitos.
Amar sempre. Temer jamais. Esse deve ser o lema da tua geração. A minha não soube segui-lo.
Se tiver muitos amigos, ótimo. Mas se tiver dois ou três, melhor ainda. São eles que vão suportar tuas angústias, lavar as feridas e comprar a aspirina.
A aspirina e o engov também serão teus amigos. Nunca te esqueças disso.
Por último, Maria Antonia, evite mágoas e rancores e, se possível, não repita os erros do velho que não cumpriu as próprias recomendações.
Pai é aquele que cria.
Se eu não estiver por aqui, aceite o que está ao teu lado e não conte que escrevi esta carta. Ele pode se magoar.
O amor, Maria Antonia, não tem forma.
Mas essa foi a forma que encontrei.
Bem-vinda ao mundo.
Felipe Pena é jornalista, escritor e psicanalista. Professor da UFF e visiting scholar da NYU, espera entregar um mundo melhor para Maria Antonia.
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
Felipe, eu te suplico q não penalizes tua filha com o nome Gilda
GILDA
(Murilo Mendes)
Não ponha o nome de Gilda
na sua filha, coitada,
Se tem filha pra nascer
Ou filha pra batizar.
Minha mãe se chama Gilda,
Não se casou com meu pai.
Sempre lhe sobra desgraça,
Não tem tempo de escolher.
Também eu me chamo Gilda,
E, pra dizer a verdade
Sou pouco mais infeliz.
Sou menos do que mulher,
Sou uma mulher qualquer.
Ando à-toa pelo mundo.
Sem força pra me matar.
Minha filha é também Gilda,
Pro costume não perder
É casada com o espelho
E amigada com o José.
Qualquer dia Gilda foge
Ou se mata em Paquetá
Com José ou sem José.
Já comprei lenço de renda
Pra chorar com mais apuro
E aos jornais telefonei.
Se Gilda enfim não morrer,
Se Gilda tiver uma filha
Não põe o nome de Gilda,
Na menina, que não deixo.
Quem ganha o nome de Gilda
Vira Gilda sem querer.
Não ponha o nome de Gilda
No corpo de uma mulher.
gostei
Gostei porque é bonito.
Acordei com o pé direito
Acordei com o pé direito lendo este texto…
Simples, inteligente,
Simples, inteligente, profundo, humano. Tenho uma curiosidade, gostaria de saber o que pensaria um banqueiro brasileiro, se lesse essa carta. Acho que é humanamente impossível não sentir mágoa e rancor em face de tanta injustiça. Mas é humano buscar o impossível.
Linda crônica
Nesses tempos temerários, bicudos, janaínicos, janóticos, mor(r)inhentos, gilmáricos, dallagnólicos, de ditadura midiático-policial-judicial, em que a babárie, a tortura e a degola de direitos impera é emocionante ler uma crônica inteligente, com a arte da literatura e a crítica política.
Esperança
Minha pequena Sophia nunca saberá.
Que Maria Antonia traga, então, às mãos que vai segurar, a esperança.
Para nós, muito a lutar ainda até que a Menina chegue.
Não nasças
Maria Antonia, não nasças. Se nasceres, serás escrava.
Um coração de mel, de melão
Clareana
(Joyce)
Um coração
De mel, de melão
De sim e de não
É feito um bichinho
No Sol de manhã
Novelo de lã
No ventre da mãe
Bate um coração
De Clara, Ana
E quem mais chegar
Água, terra, fogo e ar
Como nao amar o Felipe Pena??
Se fosse menor de idade ia falar pra ele me adotar, que nem a Adele com a Beyoncé:
[video:https://www.youtube.com/watch?v=J-Z-gDLysWo%5D
*
E por falar em diálogos entre as gerações:
Link:
http://www.romulusbr.com/2017/05/franca-como-no-brexit-velhos-sacrificam_5.html