Meus refúgios quotidianos, por Daniel Gorte-Dalmoro

Já em São Paulo, era um lamento constante não ter encontrado esse refúgio

Meus refúgios quotidianos

por Daniel Gorte-Dalmoro

Desde longa data busco locais de refúgio quotidiano: algum canto onde, por algum instante, o tempo caduca e o peso do mundo e a densidade da existência parecem dar uma breve trégua, um respiro. 

Na minha adolescência, em Pato Branco, achava esse refúgio em meu piano e nos Beethoven e choros mal dedilhados que eu tocava. Em Ribeirão Preto, encontrei nos pores do sol vistos do alto, da sacada de onde morava, enquanto tomava chimarrão (hábito adquirido não fazia muito, em minha primeira viagem a Buenos Aires) e ouvia Radiohead; era também a praça Camões, nas tardes de sol dilacerante. Em Campinas meus refúgios foram uma mureta do IFCH, onde professores alunos e funcionários circulavam dando ao ambiente um ar de aquário humano; o pôr do sol no vão da Biblioteca Central da Unicamp; por um tempo foi o brincar com tintas, ainda que tivesse o mesmo talento que tinha para música; e, em um breve período, o fim de tarde em companhia de uma garota (a quem até hoje vejo como um marco em minha vida, quem pôs fim a quem eu havia sido até então e me empurrou para quem eu seria a partir da relação com ela). Já em São Paulo, era um lamento constante não ter encontrado esse refúgio, até que em uma das últimas conversas com minha mãe me dei conta de que eu o possuía, sim: são alguns de meus caminhares a esmo pela região central da cidade – solitário ou acompanhado.

A percepção desse refúgio em movimento em São Paulo se deu justo quando estávamos nós – eu ela meu irmão – caminhando pelo que foi nosso refúgio nesses sete meses em que voltamos a morar juntos em Pato Branco – até a partida de mãe -, a rua Salvador. 

Chegamos a ela sem querer – fica há quatro quadras de casa e creio que nunca havíamos passado por lá antes. Voltamos a ela seguidamente, sempre que mãe sentia que tinha força suficiente para subir um morro (moramos num vale, cercado por pirambeiras pra todos os lados que não em direção ao centro da urbe), sempre no fim de tarde, o sol já se pondo atrás da cidade. 

Trata-se de uma rua curta, simples, bem cuidada, estreita e plana (o que é incomum para a cidade), com casas de uma classe média conformada, sem luxo nem carências nem disputas ostentatórias, em geral com quintais muito arborizados. Começa com um terreno baldio de um lado, do qual mangueiras, bananeiras e abacateiros invadem a rua com seus galhos; e uma araucária do outro, onde agora moram as curucacas que viviam no terreno de casa, até termos que cortar nossa araucária de estimação (que corria risco de cair e não tinha como salvá-lo), em 2015, pouco antes da partida de pai. Logo a seguir, um bambuzal numa simpática (e típica) casa de madeira, com uma bomba d’água manual no quintal. Termina numa rua particular, com hortências de um lado da rua, árvores do outro, até chegar a uma casa e depois dela, a plantação de soja (isso a um quilômetro do centro da cidade). 

Talvez seja de fato uma rua simplória e sem graça, mas ao subirmos lá, com mãe encarando o cansaço da doença e do tratamento, ganhou contornos mágicos para nós. A mim, parecia saída de uma animação do Miyasaki, cujo dourado do sol se pondo carregava ainda mais essa impressão. A qualquer momento eu esperava por um dirigível ou uma bruxa a passar sobre nossas cabeças ou um totoro esperando pelo ônibus. Mas não presenciamos mais que o ordinário: plantas, flores, frutas, bambus, araucárias, aves, saguis, preás, pessoas, carros, casas, pores do sol. E desse ordinário, na companhia de minha mãe e meu irmão, tecemos nosso último refúgio comum, onde a doença dava uma trégua, a contagem regressiva do relógio parecia se interromper e discutíamos a necessidade de pedir para pegar um ramo daquele bambu amarelo e plantar no quintal da nossa casa; ou de cogitar se as curucacas voltariam para nosso terreno quando o pinheiro que tem lá crescesse mais. Um refúgio onde compartilhávamos um afeto tranquilo, suspenso das preocupações mais urgentes e aflitivas que a doença impunha, onde fazíamos planos para o futuro e combinávamos quem faria o jantar daquela noite.

01 de março de 2022

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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