
Não há lugar seguro
por Ana Laura Prates
E era como se naquele imenso mar se desenrolasse os fios da história, novelos antigos onde nossos sangues se haviam misturado. Eis a razão porque demorávamos na adoração do mar: estavam ali nossos comuns antepassados, flutuando sem fronteiras. Somos da igual raça, Kimdzu: somos índicos (Mia Couto)
Voei pra Berlim pra correr meia maratona. Um amigo da minha filha me disse, na véspera: sabia que tem corrida em São Paulo? Sim, eu sabia, mesmo assim, voei. Voei porque tenho asas nos pés e porque, se é verdade que “good girls goes to heaven”, também o é que “bad girls goes to everywhere”. Minha amiga Alê e eu fomos, cavando um hiato brusco, quase violento na vida, nas dores, trabalheira sem fim, filhos, amores. É incrível o que uma mulher precisa fazer antes e depois de um hiato para a vida não desmoronar completamente e a fatura vir alta na forma de culpa. Criamos um tempo bruto de delicadeza, furando a distopia do fim do mundo, deste mundo, lá onde ela começou: Alemanha.
Uma historiadora que conhecemos teve lá sua ilusão de segurança na Europa, esse lugar tão estranho, com a pretensão de uma unidade que durou tão pouco, e cujo esfacelar se revela, ainda, nos vestígios de um muro que, em Berlim, era concreto, mas que segue se erguendo pelas fronteiras do mundo.
Percorremos as ruas da cidade reconstruída sobre ruínas de extermínios e culpas. Houve época em que tentavam nos iludir em alguma glamourosa aliança francesa “sans frontières”. No entanto, há fronteiras. Os milhões de pessoas em êxodo atualmente que o digam. O Estado nação criou fronteiras cuja face fascista estrutural Milton Santos nomeou de “esquizofrenia do espaço”.
A ilusão ocidental da superioridade europeia, o culto religioso e cafona à sua civilidade polida, funcional, esculpida com nosso ouro roubado e sangue escravizado. A (in)segurança asséptica e violenta desse nowhereland chamado aeroporto após setembro de 2001, com líquidos em sacos transparentes moles, máquinas de raio X, gente sem sapato e sem cinto. O mau humor crônico disfarçado de organização enquanto as crianças se afogam na deep web. Os kits de sobrevivência (rádio de pilha, água, antibiótico) distribuídos para os cidadãos de bem caso a guerra retorne para dentro, ou que a tsunami maior inunde mais que os adolescentes.
Enquanto isso, o que fazemos com o estrangeiro, inclusive aquele que nos habita? A eliminação dos campos de concentração de outrora e de hoje? A exclusão da segregação econômica e cultural? A escravização do racismo? A domesticação do colonialismo? A exploração das multinacionais? A burocratização das agências científicas? Eu poderia citar Camus, mas prefiro Caetano: “e eu, menos estrangeiro no lugar que no momento, sigo mais sozinho caminhando contra o vento”.
Senhoras e Senhores, o dia D é hoje. Em Berlim, Seu Jorge canta em português que está nascendo um novo líder, mas não o reconhecemos. Eu? Corro para lugar nenhum, pensando com os pés. Não fujo, nem giro em círculos, mas aprendi com o poeta Antonio Machado Ruiz que o caminho se faz ao andar. E com outro Antonio, o Cícero, reafirmo que “nada do que fiz, por mais feliz está à altura do que há por fazer”.
Não há lugar seguro no mundo, a não ser ao lado de quem se dispõe a buscar gravetos com você, pra construir uma cabana furada que não vai te proteger, mas confortar provisoriamente, como na cena final de Melancholia de Lars Von Trier. O único lugar é aquele em que você ainda não chegou, e quando acaba uma corrida, recomeçamos o treino. Meu lugar no (i)mundo são fendas e brechas por onde a-risco meu corpo: arte, amigos, amor que se traduza em ato. “Mas as pessoas na sala de jantar, são ocupadas em nascer e em morrer” (Panis et Circenses/Gil e Caetano)
Ana Laura Prates é dona de casa e mãe, psicanalista, escritora e editora. É autora, dentre outros de “Feminilidade e experiência psicanalítica” e “Da fantasia de infância ao infantil na fantasia” (Larvatus Prodeo Editora). Doutora pela USP, Pós-Doutora pela UERJ e Pesquisadora da UNICAMP. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD)
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.