O Mata-borrão, por Jorge Alberto Benitz

Um dos contos do meu livro Conversas de Livraria&Avulsas, Editora Palmarinca, publicado em 2017.

Este conto é minha homenagem aos 60 anos da movimento da legalidade que ocorre agora. É um conto inspirado nas histórias contadas pelo saudoso amigo Victor Douglas Nuñes, decano dos advogados trabalhistas gaúcho, poeta, chargista e ator de radionovela.  Ele é um dos contos do meu livro Conversas de Livraria&Avulsas, Editora Palmarinca, publicado em 2017.

O Mata-borrão

por Jorge Alberto Benitz

         — E o Mata-borrão? Perguntei, provocativo, ao meu amigo documentarista que estava sentado na poltrona do seu escritório de advogado trabalhista. Sempre o chamei de documentarista, por razões que não cabem aqui descrever. O fato é que ele nunca se incomodou com isso, ao contrário.

         — Você sabe o que é um mata-borrão?

         — Sei. Quem escrevia com caneta de tinta precisava dele para tirar o excesso e não borrar tudo, não é? — respondi, satisfeito de poder revelar o conhecimento de um objeto extinto antes mesmo de começar meu entendimento sobre as coisas e o mundo.

         — Sim, era um objeto côncavo que se passava por cima da letra escrita com caneta de tinta para absorver o grosso da tinta que ficava e que podia, como você disse, borrar tudo. Pois bem, o Mata-borrão era chamado assim porque tinha o formato do mesmo e ficava na rua Andrade Neves esquina Borges de Medeiros. Funcionava como sala de eventos e Feiras em geral. Tua provocação me incitando a falar sobre ele vem, justamente, no momento em que isso se faz necessário, diria imperativo. Tem muita coisa publicada, muito relato subjetivo, parcial que ao invés de esclarecer prejudica o entendimento do que foi, do que representou o episódio Mata-borrão no movim ento da Legalidade em 1961. O escritor Paulo Markun, por exemplo, no seu livro, narra considerando que tudo foi montado e ocorreu sob a tutela do partido comunista. Isto não é verdade. Eles participaram, porém, a única ação mais efetiva que tinham, eu até não sei se devo falar sobre isto — parou um pouco para melhor avaliar a situação, revelando certa hesitação em comentar tal fato. Hesitação que, suponho, foi logo vencida ao ficar convencido que falava de algo que sabia por ter sido parte da história, por te- la vivido, e não por ter sido alguem que ouviu falar sobre ela.

— Como estava a começar a dizer, a participação do partidão era de controlar o dinheiro que arrecadávamos vindos de ajudas e doações e que colocávamos em um grande vaso. Suponho que eles depositavam este dinheiro em um depósito para fazer frente a momentos de dificuldades futuras. O pessoal do partidão tinha muitos defeitos, mas a honestidade era um norte do qual não admitiam desvios. As sanções para quem era flagrado cometendo delitos desta ordem eram duríssimas. Coisa de gente antiga e ultrapassada. Até seus inimigos reconheciam esta qualidade moral neles.

    Eu afirmo que não havia este controle total citado pelo Markun porque como chefe da propaganda do Mata-borrão o que vi e vivenciei foi uma organização gerada e conduzida espontaneamente. Mais era de inspiração anarquista. Apesar de ser o chefe da propaganda eu não decidia sobre tudo. As pessoas que se dispuseram a trabalhar ali o faziam de forma espontânea e, como tal, se consideravam descompromissadas com hierarquias de mando. O pessoal tinha autonomia para montar um material de propaganda por sua conta. Dai que saia de tudo. Uns cartazes e faixas mais radicais, outros menos, dependendo de quem executava. Tanto isso é verdade que fui, primeiro, visitado pelo vereador do parti dão, o Schreiter, que reclamou do radicalismo das campanhas e depois outro, o Bonilha, da linha chinesa, também, do partidão que chegou reclamando da mesma forma que o primeiro só que achando que precisava mais radicalismo. Irônico, não? A este ultimo, respondi que se nem eles se entendiam como é que nós, na linha de frente, iriamos adotar uma linha de ação uniforme? Além do mais, dependíamos de doações e isso condicionava a campanha. Se recebíamos doações de tinta azul fazíamos propaganda com tinta azul, se recebíamos vermelha vai vermelho nos cartazes e faixas — Concluiu, se recostando mais na poltrona como para concluir e, talvez, por lembrar de algo, se projetou para frente, para a posição anterior demonstrando assim a necessidade de retomar seu relato, antes que esquecesse de um detalhe que lhes parecia importante:

— Ah! Também, apareciam uns sujeitos que ficavam sentados observando o movimento. Sabíamos que eram policiais infiltrados. Quando perguntávamos o que eles queriam, ficavam embaraçados e para disfarçar se colocavam a disposição para qualquer tarefa. O que os denunciava e que fazia com que nunca retornassem depois deste tipo de inquirição.

    Neste momento, ele levantou- se e pegou um livro que estava sobre a mesa. Havia nesta uma pilha desordenada deles. Alguns abertos, demonstrando terem sido alvo da pesquisa sobre a imigração alemã, o projeto em curso. Não deu outra, logo estava ele a falar sobre as perseguições que os alemães e seus descendentes sofreram na ditadura Vargas. Era um assunto que me interessava.  Apesar de interessante, não me interessava por ora. Deixei que ele falasse um pouco para depois conseguir convence-lo a retomar o assunto mata-borrão. Como fui diplomático, não percebi te- lo incomodado nesta tentativa de levar a conversa para o assunto que mais me interessa no momento que é a história do Mata-borrão ou a sua versão sobre. Tanto isso é verdade que senti nele o mesmo animo quando me atendeu falando de outro escritor que abordou o tema cometendo disparates maiores. Indignado comentou que quando o assunto envolve gaúcho sempre vem esta arenga de cavalo, gaúcho pilchado, em torno de uma roda de chimarrão e de trago e foi isso que um celerado narrou no seu livro. Para coroar a sandice o tal escritor ainda citou como locutor da legalidade Manoelito de Ornelas. Nem o Manoelito foi locutor do movimento da Legalidade, nem o Mata-borrão foi palco de uma gauchada nos moldes descritos pelo desmemoriado ou fantasista escritor — arrematou irritado, algo destoante de sua maneira serena de contar histórias.

         — Tudo era difícil. Não tínhamos agua, banheiro, comida. Dependíamos de ajuda, de doações. Uma vez, eu saí e quando voltei o pessoal tinha conseguido comida. Como estava com fome pedi algo para mim. Em resposta, de acordo com a máxima revolucionária que reza ser responsabilidade de cada um conseguir sua subsistência, disseram que eu deveria me virar para conseguir comida como eles fizeram. Se eu não estava no momento em que conseguiram comida, o problema era meu. Engoli em seco esta recusa e tive que criar maneiras de me alimentar e alimentar os que trabalhavam mais próximos de mim. Começamos a acreditar que o moviment o tinha consistência quando sentimos a necessidade de ter um telefone para melhor articula- lo. Você já fez um oficio? Ele me perguntou e respondi.

         — Sim. Fiz muitos ofícios quando estávamos militando contra a ditadura. Ofícios convocando reunião na minha empresa, pleiteando algo, etc… — ele me olhou com um olhar desconfiado, com um olhar de quem não acredita muito no que estou dizendo e continuou seu, naquela altura, cada vez mais interessante, depoimento:

         — É… um oficio. Daqueles comuns, formais, sem muito floreio. Enviamos a companhia telefônica um, dizendo: Solicitamos a vossa senhoria um telefone, etc…. Isso era uma audácia. Na época ter um telefone era para poucos. Era um luxo e além do mais a empresa telefônica, fora recém-encampada pelo Brizola e ainda se discutia o tamanho da indenização que no fim resultou em um pila simbólico, representando que os donos já tinham recebido mais do que o merecido. Para você ter ideia do momento, ainda o diretor presidente era americano. Pois, esta empresa, que naquela altura só queria minimizar o estrago, mandou quase imediatam ente um telefone para nós, os rebeldes. Com este ato, ficou claro o respeito que o movimento adquiriu. Se até os americanos que tinham tudo para ficar contra, reconheciam a sua força, ficou evidente nossa importância naquele contexto conturbado — arrematou, energicamente, demonstrando satisfação e regozijo ao relembrar episódio tão importante de sua vida pessoal, do estado e do país. O épico aqui não está fora do lugar.

         — Um episódio interessante que ocorria no final da tarde era a caminhada do pessoal da Companhia Carris vindo desde a sede, que ficava na Avenida João Pessoa, passando pela Salgado Filho, subindo a Borges  e terminando no Palácio do Governo. Era bonito ver aquele pessoal com o traje de serviço vindo depois de fim do turno. No começo, não era uma marcha nem uma passeata. Eles vinham em grupo, silenciosos e determinados. Depois, eles receberam instrução e treinamento feito pelo meu amigo Turíbio, que tinha servido no exercito recentemente, e começaram a marchar. Demonstravam assim organização, orgulho e determinação. Era uma beleza de se ver. Não tinham nenhuma obrigação de fazerem isto. Faziam movidos pela vontade cidadã de defender em armas, se fosse preciso, os valores republicanos. Conscientes ou inconscientemente, percebiam o que estava em jogo naquele momento.

Jorge Alberto Benitz é engenheiro e escritor.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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