O outro homem que amava os cachorros
por Armando Rodrigues Coelho Neto
Há um homem que amava os cachorros, que virou título de livro. É um tal Ramon Mercader, comunista catalão, que seguindo conselhos da mãe, se converteu em agente secreto russo e entrou para a história, como assassino de Trotsky. Mas, não é desse que quero falar. Mas, sim de outro homem com coração de cão, que verdadeiramente amava os cachorros e como tal, tinha momentos irascíveis, mas como um cão não tardava a revelar sua pureza de sonho por um mundo fraterno. Enrique Rodolfo Marti, militante da fraternidade, fugitivo da ditadura na Argentina, abraçou o Brasil como Pátria. Mão gostava, sobretudo, de julgamentos morais e sobre o Brasil de hoje…
Corta!
Falemos de Migué. Trata-se de nome fictício de um morador de rua, daqueles que se confunde com tantos outros, que têm como fiéis companheiros os seus cães. Franzino, abandonado por governos e anjos de guarda, santos e deuses, sequer tinha carnes e músculos para exibir. Sua magreza era escondida por um paletó já velho e surrado, que ganhou numa noite de frio de um homem que amava cachorros.
Migué cheira ou cheirava a tudo, ainda que não cheirasse nada de bom, nem tinha grana pra cheirar branquinha. Cheirava a álcool, cheirava a tudo que soa desagradável – de urina a poeira do mundo. Seu ofício era fingir olhar carros e, vez em quando, criava caso com os patrões e doutores que não lhe davam um trocado, como recompensa pelo seu desolhar vigilante sobre os carros parados na rua.
Migué tinha um fiel e inseparável companheiro, um cão de nome Black que não levava desaforos pra casa, principalmente quando o assunto era o seu dono. Um dia, um policial militar, um daqueles que infernizam moradores e frequentadores da Praça Roosevel… (Sim, a Polícia Militar na Roosevelt, aquela que rouba o espaço público se forma sorrateira, mais enfeia e incomoda a região do que serve pra alguma coisas…). Experimente levar uma queixa até eles e veja o acontece… Padece, esquece. Volto ao cão Black, bem mais digno e fiel.
Dizia eu, que um dia, um policial militar apareceu para infernizar a vida de Migué e o cão, como um cidadão honesto, digno, nacionalista, conhecedor de seus direitos, tirou satisfações com o policial, que aliás, era exatamente o inverso do cão. Sim, estou falando do cão, não do Migué. O cão Black tirou satisfações com o policial que perturbava seu dono. Ao ser molestado indevidamente pelo PM, Black Mordeu a manga da farda do samango, que quis prender o Migué e o cachorro. O PM queria até cartão de vacina do Black e se lhe fosse possível, queria até ver a capivara e pedegree do Black.
Migué passou pelos piores vexames – safanões, puxões de orelha, chá de galão, mas o que mais doeu em Migué foi a prisão de seu cachorro. O policial levou o cão preso e entregou no centro de zoonose da cidade de São Paulo. Migué continuou triste olhando carros, embora perguntasse para todo mundo onde era aquilo – o Centro de Zoonose.
E foi assim na base do “a todo mundo eu dou psiu”, que Migué encontrou “O homem que amava os cachorros”. Seu nome, Enrique Rodolfo Marti, ativista da Comissão de Justiça e Paz, morador da Praça Roosevelt, que conhecia de vista o Migué. Após muita luta, Enrique conseguiu devolver Black ao Migué. E, desde então, Enrique passou a se gabar de haver impetrado habeas-corpus até para cachorro.
Não se sabe o número de galáxias existentes no universo. Há quem fale até em 200 bilhoes. Reservo-me porém a desconfiança, que em alguma delas, o homem quem amava os cachorros tem um encontro com Black em alguma delas, talvez aquela que deu de chamar Ceú do Cachorros, onde por certo moram Ninoska, Leopoldo, Odara, Joquinha e o meu amadíssimo Tevez…
Existem muita formas de se contar a história de militantes da fraternidade. Uma delas é falando só de cães… E a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo ficou mais pobre.
Armando Rodrigues Coelho Neto – jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.
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