O vírus e o verme, por Marília Moreira

Aos que não sucumbiram coube ver aquela nação solar mergulhar nas trevas, assolada a um só tempo pelo vírus e pelo verme

O VÍRUS E O VERME

Por Marília Moreira

Era uma nação solar.

Seus habitantes coloriam suas mazelas com estampas felizes, acalentavam suas dores no embalo da música e expeliam as suas angústias em gritos de “gol!”

Era um povo alegre, dizia-se, o sorriso rasgado colado ao rosto, o corpo sempre entregue, aberto ao abraço, ao molejo da dança, à malícia do sexo. Um povo voltado para o outro, supunha-se, voltado para fora, eufórico.

Era, no entanto, um país de avessos, de sombras profundas ocultas pelo brilho ardido de uma alegria de spot light. E na superfície o riso, na superfície o gozo, na superfície o sol a dourar a casca e a ofuscar os olhos.

E então, veio o vírus. E com ele o imperativo de um isolamento forçado. Os festivos habitantes daquele país iluminado foram obrigados a encerrar-se em suas casas, a abandonar tudo ou quase o que os fazia vibrar. Cancelaram-se as partidas de futebol, os encontros no boteco, as idas à praia, o churrasco, as compras, os encontros, as festas. A assepsia constante das mãos e das coisas parecia limpar também os últimos vestígios daquela tal felicidade.

Alguns mergulharam nos livros. Os que puderam, no trabalho. Outros encontraram um frio refúgio no universo virtual. Os que estavam com suas famílias, uniram-se, brigaram, ajustaram-se. Por vezes, mataram-se. Todos, sem exceção, viram delinear-se, nas paredes de suas retinas, as sombras, aquelas, antes ocultas pelo excesso de luz e que agora, como a esfinge de Tebas, ameaçavam devorar todos aqueles que não fossem capazes de decifrar o seu enigma.

Diante do escuro, o medo germinava no intestino dos homens, entranhava-se nas vísceras, corroía os tecidos, penetrava nos ossos, nos órgãos, nas células, agarrava-se a garganta, dilatava poros e pupilas.

Poucos, muito poucos tiveram meios de decifrar o mistério das sombras.

É que antes do vírus, veio o verme. Silenciosa e lentamente o verme havia de instalado no interior de muitos e sugado tudo, ou quase, o que os constituía como humanos. Ninguém viu quando o verme deixou os corpos através dos excrementos, uniu cada uma das suas parcelas nos fétidos subterrâneos do país e ganhou corpo, corporificou-se, personificou-se na abjeta figura de um falso líder messiânico em quem as pobres pessoas, esvaziadas de sua humanidade, podiam, enfim, verem-se espelhadas.

Desprovida de coerência interna, a população não percebia a absurda incoerência dos discursos vazios que o verme, feito líder, expelia através de sua boca imunda. Despojada de seu altruísmo, pessoas ditas “do bem”, não se importavam com as ofensas e ameaças que Ele fazia aos outros, às minorias, a qualquer um que não fosse um “eu”, ou por vezes até mesmo a esse “eu” que, não obstante a completa falta de erudição ou mesmo de elaboração daqueles discursos, pareciam incapazes de compreender o mínimo conteúdo ali contido: ódio, violência, destruição.

“Vamos acabar com tudo isso aí, tá ok?” – vomitava o verme.

“Tá ok! Tá ok! Tá ok! Tá ok! Tá ok!” repetia a população em eco, balançando mecanicamente as cabeças, sem se dar conta de que “tudo isso aí” incluía cada uma dessas cabeças, seu futuro, seus sonhos, sua liberdade, sua instrução, sua cultura, sua dignidade, enfim, tudo aquilo que os qualificava como humanos.

As sombras cumpriram a promessa e devoraram todos aqueles que não foram capazes de decifrar o seu enigma.

Aos que não sucumbiram coube ver aquela nação solar mergulhar nas trevas, assolada a um só tempo pelo vírus e pelo verme.

O vírus, apesar de toda a sua malignidade, restituiu a muita gente a generosidade, a compaixão, o poder da reflexão, o senso de coletividade, a capacidade de olhar para o outro, para si e para o mundo num sentido amplo.

O verme, por sua vez, aquele mesquinho, vil, execrável verme, que de tão repugnante, nem o vírus ousava tocar, trouxe apenas miséria, destruição e dor.

Ainda não é conhecido o final dessa história. Ouvi das sombras que se espera do verme que ele acabe por corroer as suas próprias entranhas.

 

Nota biográfica

Marília Moreira é atriz e autora das peças teatrais “Além da imagem – um réquiem para Marilyn Monroe”, “Andanças de uma lagartixa” e “Língua de Boi”. Também escreveu o livro de poemas infantis “Lia e o feitiço da palavra”, pelo qual recebeu o prêmio FNLIJ de escritora revelação.

 

Redação

7 Comentários

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  1. Por falar em verme, o $érgio Moro, que confessou ter condicionado o abandono da magistratura para se tornar $uper-$inistro do Governo Miliciano à garantia de uma pensão sem previsão legal para sua família, caso houvesse algum acidente de percurso enquanto ele ocupava a pasta, garante que não condicionou sua concordância com a exoneração do Valeixo à garantia de uma cadeira para si no $TF.

    Ele era contra a exoneração do Valeixo em razão de não haver nenhum motivo para este ser exonerado. Mas Moro sinalizou que, futuramente, poderia concordar com a exoneração independentemente de haver, ou não, motivo justo para tal substituição. Segundo o ex-$uper-$inistro:

    “Dialoguei com o presidente, busquei postergar a decisão, sinalizando que poderia concordar com isso no futuro. Num primeiro momento, pensei que o nome poderia ser alterado, mas cada vez mais me veio à cabeça de que isso seria um grande equívoco. Falei então para substituirmos o Valeixo por alguém que representasse a continuidade do trabalho, mas não obtive resposta. A exoneração não foi assinada por mim. Fiquei sabendo na madrugada, pelo Diário Oficial. O presidente não apresentou um pedido formal. Sinceramente, fui surpreendido e acho isso ofensivo. Este último ato representa que ele (Bolsonaro) não me quer no cargo”.

    Ora, se futuramente ele poderia concordar com a exoneração do Valeixo independente deste continuar, ou não, a fazer um trabalho técnico e sério, porque ele não concordaria com está substituição logo agora?

    Ora, ele concordaria quando a vaga no $TF estivesse garantida. Portanto, o pobrema não era a substituição em si do Valeixo, mas QUANDO essa substituição deveria ser feita.

    Como o Bolsonaro iria garantir a pensão à familia Moriana? Às custas de quem? Até quando?

  2. Eu diria que antes do vírus e do verme vieram a ameba, e antes desta, a bactéria, uma colônia inteira delas vinda das águas revoltas de Curitiba, elas que intoxicaram corpos e mentes, que cegaram e ocultaram a luz, corpos que tomados pela fraqueza e desesperança, permitiram com que estes micróbios infestassem um país inteiro.

  3. O verme corroía e proliferava nós intestinos do povo de casca feliz desde os idos do descobrimento. Foi só haver um desarranjo intestinal por conta de mudanças significativas na dieta alimentar que o verme deixou os intestinos e atingiu os neurônios desse povo de casca feliz.

  4. O suspeitíssimo ministério da saúva: informou 6209 novos casos e 428 mortes nas últimas 24 horas.
    Pronto, são os números adotados pela mídia em geral; todos os noticiários replicam.
    Pouco depois, os números passam para 6357 novos casos e 483 mortes.
    Daí ninguém diz nada.
    Lá pelas 21 horas, nova alteração: 6729 novos casos e 509 mortes nas últimas 24 horas.
    Afinal, quantas 24 horas diárias há no tal ministério da saúva?
    Consideremos que entre os últimos números e os primeiros (os da mídia), há acréscimo de 11,34% e, em relação às mortes o aumento é muito maior, 18,92%.
    Até aí conseguem fraudar as informações…

  5. “… antes fosse pra soldado, antes fosse prô Brasil.” — Antonio Nobre.

    Nassif: isso é que me deixa indignado, essa falta de pudor, essas comparações vulgares e baixas, procurando ridicularizar coisas importantes. O articulista pode estar revoltado. Pode até lhe assistir razão. Mas nunca, oferecer um texto tão ofensivo. OS VÍRUS MERECEM SER TRATADOS COM MAIS DIGNIDADE, MAIS E TODO RESPEITO…

  6. Muito bom esse texto, representa bem o pesadelo, os tempos sombrios que estamos vivendo na política em meio a tristeza dessa pandemia.

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