Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Reginaldo Rossi em A Raposa e as Uvas, por Urariano Mota

Por Urariano Mota

Na quinta-feira 20/12, fez cinco anos da morte de Reginaldo Rossi. Mas nem por isso ele será menos lembrado. Hoje, quem pesquisar no google “a raposa e as uvas”, por exemplo, entre mais de cento e vinte mil resultados a maioria não será da fábula reescrita por La Fontaine. Em número maior, os resultados irão para a história que se tornou a fábula de Reginaldo Rossi.  E o motivo não é menos nobre, ou menos culto. A bela crônica composta por Reginaldo Rossi se tornou um poema que se canta e dança em todo o Brasil.

“Eu todo cheiroso a Lancaster e você a Chanel”. Onde Reginaldo Rossi foi achar jovens suburbanas comprando perfume Chanel para matar de sedução? Ora, pobres só podem ter perfume de pobre. Mas a gente precisa sonhar moça linda de modo menos ambicioso? E a riqueza da rima, que faz Chanel casar com “eu era um menino, mas fazia o papel”? O verso é uma observação precisa do jovem que pensa que é homem completo.  E só mesmo a datação mesquinha não perdoaria a mocinha, como a imagino, vestida de bailarina como aquela bonequinha do conto de Andersen do soldadinho de chumbo. Que venha o Chanel, pois já lhe sentimos o cheiro.

 

Mas a bailarina de Andersen existe só no sentimento do soldadinho. A de Reginaldo Rossi é diferente, com roupas que farfalham como pétalas na sala da casa:

 

“Um vestido rodado
E aquelas anáguas
Com tantos babados
E você se sentava
Só pra me mostrar”

 

Reginaldo Rossi traz o olho de repórter do tempo. Não vou pedir desculpa pela associação, mas ele faz um Proust sintético de subúrbio: .

 

“E ao chegar em tua casa
Em frente ao portão
Um beijo, um abraço
Minha mão, tua mão
Com medo que o velho
Pudesse acordar

A pílula já existia
Mas nem se falava
Pois nos muitos conselhos
Que tua mãe te dava
Tinha um que dizia:
‘Só depois de casar’”

 

O que em prosa, nos limites de uma crônica, eu poderia contar desses versos do tempo? A repressão, a moral do atraso, os impedimentos para o amor e a perversão de costumes que esse mundo de proibições trazia voltam. Mocinha pra casar ao lado de mocinha pra transar era uma delas. Sexo somente depois do casamento, mas todas as variações que não rompessem o sagrado hímen, sim. E sexo à vontade, mau sexo, pago nos bordéis, para melhor defesa da família.

 

“E tudo que a gente transava
Eram três, quatro cubas”

 

Chega a ser cômico. Eu, que não sei dançar, pensava que a música era “tudo que a gente transava eram três, quatro curvas”. Isso porque a gente quando não sabe dançar e bebe, dança fazendo curvas. E aos tropeços nos pés da amada, que se nos amar perdoa. É claro, os que sabem dançar levam uma imensa vantagem, enquanto os não-dançarinos procuramos vencer por outros valores. Mas dançar é divino, não vamos fazer da inabilidade uma nova uva verde. Dançar é bom.

 

A gente já vê que a música é uma poetização da dança. Estamos numa festa, e Reginaldo Rossi faz citação do bolero “bésame mucho” num ritmo distinto. É quase mágico.

 

“Quando a orquestra
Tocava ‘Besame Mucho’
Eu lhe apertava
E olhava seu busto
Dentro do corpete
Querendo pular”

 

O busto dentro do corpete querendo pular, o que é isso? É um bárbaro suburbano que nada perde do instante. Noto, de passagem, que ele fala em corpete, como uma identificação do que foi passado e volta. Ele não fala em sutiã. Mas por que Reginaldo Rossi chama de “A raposa e as uvas”, uma referência clássica, para os jogos de sedução e amor nos subúrbios? Penso que a razão é esta: era amargo o fruto que não se podia provar. Frutos verdes, enfim, que os lobos famintos rondavam como se fossem raposas espertas.

 

Os jovens então que eu conhecia nem sequer sonhavam com a lambreta, que era a moto daqueles anos, porque o sonho material dos pobres era ter uma bicicleta. Então, levar a namorada na garupa da lambreta, a moto mais acessível da época, era um sonho. Porque antes, maus dançarinos e sem lambreta, nem coragem tínhamos de perguntar à mocinha linda:

 

– Vamos dançar?

 

– O quê?

 

– A Raposa e as Uvas.

 

E sairíamos a dançar a música que só na maturidade dançamos.  O engraçado é que naquele tempo eu desprezava a música das festinhas, o iê-iê-iê, como a chamávamos. E assim perdi a oportunidade de dançar nas festas e assustados onde se namoravam as moças mais bonitas de Água Fria, do Arruda e de todo o Recife. Hoje compreendo, elas eram as uvas e eu a raposa que fingia não desejá-las. Mas calado sonhava em  dançar com a mais gentil, depois de umas quatro cubas libres.

 

 

*Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia/317685-1?fbclid=IwAR2raCbRSEkqfK8pUBf3i4CzxKynv7WkRJN8qp3BxylbM22I9jvFgtQ8ax4

 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

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