Ritos de Passagem, quando eu morrer amanhã

Publicado originalmente em 07/03/2004

Quando eu morrer amanhã, vou querer meu quarto cheio, cercado por minhas mulheres -filhas, tias e irmãs e as companheiras dos melhores dias. Não as espero aliviadas, para não liquidar com minha auto-estima, mas as quero conformadas, com a sabedoria dos que aprenderam a conviver com o inevitável.

Posto que, como recompensa pelo martírio diário do fechamento, Deus concede aos jornalistas a suprema graça da morte súbita, não haverá tempo para as últimas palavras. Desperdiçarei meu treinamento, dos 8 aos 14 anos, enquanto me encantava com as últimas palavras dos “Homens e Mulheres Célebres” da Tesouro da Juventude, edição de 1925.

Sendo inesperada a passagem, mais uma vez serei vítima de minha eterna distração. Levarei algum tempo para me dar conta do inusitado da situação, de ver no mesmo ambiente enevoado, no súbito infinito da passagem, minhas filhas mais novas com seus avós, que, por uma dessas falsetas temporais, não tiveram chance de conhecer. As mais novas repetirão que “papai só faz rolo”; e minha mãe dirá pela milésima vez para eu parar de ser distraído.

Posto que, nesses instantes de passagem, Deus nos faculta o corte transversal do tempo, poderei escolher o ambiente da confraternização. Provavelmente ficarei entre o quartão, no fundo da casa da minha infância, que abrigava nossas celebrações natalinas, e a sala da casa da tia Rosita, onde, criança, me encolhia em um canto ouvindo as serestas de meu tio. Ou ainda na sala da casa de meu avô, aqui em São Paulo, onde, no Dia dos Pais, se preparava a bacalhoada que reunia filhos e netos. Não pensarei em nenhuma das muitas casas em que morei depois de adulto, talvez pela orfandade da casa em que nasci.

Haverá música da boa, porque a passagem não prescinde de bom fundo musical. Aceitarei de bom grado a Bachiana Número 4“, de Villa-Lobos, e a “Flor do Cafezal”, com Cascatinha e Inhana. Minha vida não foi suficientemente piedosa para aspirar a Garoto e Jacob me aguardando com seus bandolins. Mas haverá a voz cristalina de minha mãe cantando Chuá Chuá. E haverá tia Mariana, como que saída do fundo do tempo, cantando Frô do Ipê” e contando histórias com aquela capacidade de compor frases que parecia da tia Olímpia, a louca de Ouro Preto.

Na celebração intemporal dos afetos, haverá a figura reverencial do meu avô Issa, me abrigando embaixo de seu braço protetor, ao lado de meu pai Oscar. Minha avó Martha ficará suspirosa em um canto, conversando com a bisavó Mariquinha.

Farei questão absoluta de ser filho e neto, respeitando a precedência das gerações. O lugar central da mesa será de meu avô e meu pai. Mas não abrirei mão de manter, num canto da mesa, mas no meu entorno, o pequeno arquipélago das minhas meninas.

As meninas ficarão surpresas de verem, nos avós, valores, modos, tiques que transmitimos a elas. Vó Tê se surpreenderá ao identificar seu estilo gozador tanto na neta mais velha, a Mariana, quanto na penúltima, a Bibi.

Vão me supor distraído, mas com o rabo dos olhos verei minha filha Luizinha me acompanhando com aquele olhar dos que sabem transmitir afeto sem arrebatamento. E não haverá como deixar de ouvir os gritos exuberantes de Mariana e da Clarinha, de quem não consegue transmitir afeto sem arrebatamento.

De cada uma de minhas meninas levarei um instante intenso de recordação. De Mariana, a fantasia de baiana, no carnaval de seus dez anos. De Luizinha, o abraço apertado que meu deu aos seis anos, celebrando nosso reencontro. Da Bibi, o olhar afetuoso dos três meses de idade, que me conquistou para sempre. Da Dodó, o bico armado de quem nasceu para dar e receber beijos. Da Clarinha, o abraço apertado e a declaração que desmontou o avô.

Como último desejo do lado de cá, sentirei em meu rosto o afago da mãe quente de minha mãe. Como primeiro contato com o lado de lá, ela dando ordens sobre como me comportar. Tudo isso quando eu morrer amanhã.

 



Luis Nassif

Luis Nassif

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  • Amanhã, Nassif ?

    Nassif, sessentão que nem você, de vez em quando, surpreendo-me e surpreendo ao meus filhos(2) e neto(1) com estes "papos furados" gíria dos anos sessenta, e depois caio na real, e peço a Deus, que me dê vida longa, porém com qualidade e junto à prole, e jamais esqueço, de pedir ao Criador, que preserve tambem, e dê vida longa e vida em abundância, aos meus amigos e contemporâneos, dos quais voc~e é um dos mais lembrados.

    Amigo, antes de falar da morte "amanhã" vira esta boca prá lá, amigão !

  • Nassif, quantas vezes leia esse texto, quantas vezes o admirarei

    Vezes houve em que as fotos eram outras. O tempo traz outros rostos, outras vibrações. Eu acompanho o blog há muitos e muitos anos. Acompanhei tantas das histórias suas por aqui, Nassif...

    Há um momento em que a gente acaba se sentindo meio, assim, parente. Acho que é a isso que dão o nome de fraternidade.

    A afetividade é uma conquista.

    E vou sempre aplaudir quando surge por aqui, por aí, um Nassif assim desse jeito que apareceu hoje.

    Abraços à Eugênia, que eu lhe disse que queria que fosse uma filha minha.

  • Rito de passagem...

    Seu terno amor pelas "suas meninas", só me faz ver que, meu amor pelos "meus meninos", não é joia rara...sou mais um, numa imensa irmã multidão.

    Abraços.

     

  • Mais um belo texto do Nassif

    Mas que papo ruim hem. Para que lembrar daquilo inominável  que não ousamos pronuciar.  Para Dom Juan, sempre a nossa esquerda e atrás de nós. Se tivermos bastante concentração e formos rápido, conseguimos um deslumbre daquilo. Um dia e vem e pega a gente. Mas que seja bem distante ainda. 

  • Ritos de Passagem, quando eu morrer amanhã

    Onze anos se passaram da publicação original e Nassif dando inveja na gente; pelo excelente texto. Esse amanhã vai demorar e muito, tá bom pra você. 

  • [...]"Muitos dias depois

    [...]

    "Muitos dias depois Tubi ainda chorava a morte do Mangarito, e mais ainda quando se lembrava dele sendo arrastado para debaixo do angico, os homens puxando com força, gritando uns com os outros e rindo sem respeito, como se estivessem arrastando uma pedra ou um pedaço de pau, e o pobre do Mangarito raspando o pelo nas pedras e gravetos, largando chumaços de cabelos pelo caminho e se sujando de terra.

    Uma tarde, já quase de noitinha, Belmiro chamou Tubi para visitar o Mangarito debaixo do angico. A mãe não gostou, o menino ainda estava tão choroso; Belmiro percebeu a desaprovação e fez sinal pedindo que deixasse.

    Quando pisou distraído a terra fofa do lugar onde estava o Mangarito, Tubi caiu no choro.

    - Se eu fosse você não chorava - disse Belmiro alisando a terra com o pé.

    - Eu gostava dele.

    - Eu sei. Por isso mesmo é que você não deve chorar.

    - Eu choro porque sinto falta dele. Nunca mais vou ver ele.

    - Aí é que está. Você chora porque está pensando mais é em você. Ele também não vai ver você, e aposto que não está chorando.

    - Mas ele morreu. Como é que ia chorar?

    - Você tem certeza de que ele morreu? Quem é que garante?

    - Então não morreu? Não foi enterrado? - disse Tubi quase indignado.

    - Aí é que está. Pare de chorar e enxugue esses olhos que eu vou explicar como é que entendo a situação. Para todo mundo ele morreu. Parou de respirar, de mexer, foi enterrado. Isso é o que todo mundo diz. Mas eu acho é que ninguém morre. Quando dizemos que uma pessoa, ou um bicho, morreu, o que aconteceu foi que mudou de morada. É assim, ó - e riscou uma linha no chão com um graveto. 

    - Esta linha é a divisa. De um lado os que a gente diz que morreram, de outro os que estão vivos. Quando a pessoa, ou o bicho, passa de um lado para o outro, dizemos que morreu. Mas quem é que sabe qual é o lado dos vivos, e qual o dos mortos? Para nós, que estamos do lado de cá, é o lado de lá; mas para eles deve ser o lado de cá. Quando uma pessoa atravessa a linha, morre de um lado mas nasce de outro. Você entendendo isso vai ver que quando Mangarito morria de cá, nascia de lá. E você vai chorar só porque o seu cavalo mudou de morada? Tem cabimento isso? 

    Tubi pensou, quis se entusiasmar mas ficou na dúvida, perguntou se o Mangarito quando nasceu do outro lado nasceu pequenininho, se precisava mamar de novo, se nasceu sabendo marchar ou se tinha esquecido, se ia ter saudade do Amanhece e dele, Tubi. Belmiro ia ouvindo e respondendo de maneira a sossegar o menino e fazê-lo esquecer o choro.

    - Então quer dizer que de verdade ninguém morre - disse Tubi afinal.

    - É isso mesmo. Vejo que você já entendeu."

    Trecho do conto Na Estrada do Amanhece, do livro A Estranha Máquina Extraviada, de José J. Veiga. Ed. Bertrand Brasil, 2010.

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