Sobre a pedofilia

(Comentário ao post O caso dos sutiãs com bojo para meninas)

Vamos por partes que pode não ser bem assim.

Embora eu não seja nem pedagogo nem psicólogo nem historiador, de várias leituras surgem outras ponderações. Sujeitas a equívocos por escrever de memória.

Não podemos dizer que nunca foi tão comum a pedofilia como na era atual. É muito mais provável o contrário, pois desde décadas se firmou o conceito na nossa sociedade (ocidental, urbana) de que maiores de 18 anos (considerados “adultos”) não devem manter relações com menores dessa idade. O que ocorre mais agora é a identificação desse crime. Também ocorre mais o turismo sexual com esse fim.

Se definimos pedofilia como crime com faixas específicas de idade, sim, agora é mais percebido. Se falamos em relações sexuais entre maiores de 18 e adolescentes, não, ao longo da história humana isso foi muito mais comum que agora.

Em muitas sociedades antes da colonização e disseminação de valores cristãos ocidentais não era incomum que crianças presenciassem os pais em relações sexuais, algumas sociedades como a polinésia não tinham conceito de infância e de passagem para adolescência, as pessoas simplesmente “cresciam”. Em várias culturais parentes mais velhos dos adolescentes participam dos ritos de passagem para a idade adulta.

E em todo o mundo, antes de “o PIB multiplicou por 50” (Delfim Netto, explanando o movimento de 300 anos recentes), o que se via eram unidades familiares minúsculas, não havia nada disso de quartos separados para as várias atividades dos entes familiares. Os conceitos de modéstia e recato, vistos em filmes e lidos em romances históricos são para nobreza, aristocracia e depois burguesia. Não valiam para 99% das pessoas.

Não vamos esquecer das muitas sociedades com casamentos por apresentação, em que os noivos têm 12, 13 anos. Nem vamos esquecer que o conceito de “adulto” é cultural e historicamente determinado. Até o século XIX maioridade aos 15 anos era comum, e até a Idade Moderna jovens dessa idade já eram reis, generais. O que não é de estranhar, pois faleciam aos 30 e poucos…

Com o advento de burguesia comercial, revolução industrial, necessidade de escolarização o que ocorreu nos últimos 300 anos, principalmente nos últimos 100 (Europa) ou 50 (restante do mundo) foi exatamente o contrário : a progressiva infantilização das gerações. A idade de se iniciar o trabalho (junto com a vida sexual outro ícone da passagem para a vida adulta) vai se alargando. 12 anos, 14 anos, 16 anos… 18 anos para quem concluiu o ensino médio. E caminhamos para uma sociedade do futuro onde as pessoas serão consideradas aptas a trabalhar apenas após a faculdade. E mais para a frente será após a pós-graduação (na Europa atual é muito comum isso.)

Não sei datar quando começaram as restrições legais para o sexo adolescente, mas isso é ligado à necessidade de considerar a adolescência como segundo estágio da infância, não mais como fase inicial da vida adulta. (No passado havia outro paradoxo : as pessoas eram “adultas” a partir dos 12-15 anos, mas cresciam fisicamente até os 20-25 anos; hoje é o contrário, atingem o auge de crescimento físico cedo, mas o conhecimento necessário para a vida social tarde.)

Há alguns movimentos reversos, como conceder direito a voto e a dirigir – e também a tentar estabelecer maioridade penal – com 16 anos. Que não alteram a tendência geral à infantilização tardia. Se até não muito tempo atrás a passagem da infância para adolescência determinava a entrada no mundo adulto de várias formas simultaneamente (trabalho, sexo, constituição de família), o que temos agora é uma dicotomia : jovens não conseguem ser considerados adultos para várias coisas importantes, principalmente a atividade econômica, mas têm acesso (não desejado pelos pais) a outros ícones dessa passagem, como a vida sexual. E ficam sem a informação necessária, como exemplo a quantidade de gravidezes não-planejadas. A surpresa relatada por pais ao descobrirem que adolescentes podem, sim, ser homossexuais conscientes é sinal disso tudo, da incompreensão geral do que significa essa etapa da vida.

Não é nossa sociedade atual que é erotizada precocemente. Por milênios foi normal adolescentes serem erotizados a partir dos primeiros sinais de puberdade. É fenômeno recente a “não-erotização” dos adolescentes (todo o conjunto de proibições e vigilâncias criados com o sistema escolar, fazendo parte a divisão de alunos por gênero, muito comum até os anos 1960) e isso até é coerente com a necessidade de manter as pessoas estudando mais e mais para as atividades econômicas modernas.

Só que a puberdade ainda ocorre fisicamente como antes. Talvez ainda mais cedo com as mudanças na alimentação e o crescimento rápido (em nenhum momento da história antes do século XX adolescentes chegavam aos 1,80 de altura aos 13, 14 anos.) No fim temos essa contradição : uma sociedade que precisa/deseja infantilizar as gerações por mais tempo, mas que lida com uma erotização latente.

A publicidade moderna, onde há um esforço para se descobrir formas de se vender mais coisas para mais segmentos, percebe isso e não ajuda em nada, claro. É esse movimento de criar para adolescentes e crianças acessórios de roupas, cosméticos, acesso a bens de consumo como celulares, costumes de tribo, às vezes até tatuagens, e muitas coisas sem relação com ensino convencional que passam essa impressão de erotização precoce. Fazê-lo para crianças de 6 anos é evidente exagero comercial, mas fazê-lo para adolescentes já com sinais de fertilidade é um dilema : como a sociedade pretende lidar com impulsos sexuais existentes sem dar informação para isso e infantilizando para outras atividades? Até o fato de vedar ao trabalho acaba dando tempo e condições para a erotização…

Quanto a adultos (hoje definidos como maiores de 18 anos) também a erotização atual pode ser apenas suposta. Comercialmente é grande, já que até carros são vendidos como acessório para conquistas sexuais. Mas na prática? Se não houvesse tanto silêncio em relação à sexualidade real, e tivéssemos “séries históricas” de frequência de relações sexuais entre adultos, o que poderíamos ter? Meus palpites : há cada vez menos relações extraconjugais (amantes), pois a cultura condena isso, favorecendo antes a dissolução do matrimônio anterior e a estrita monogamia (há uma expressa condenação moral da traição); há um excesso – que leva a menos tempo dispendido em relações íntimas – de atividades de trabalho (agora envolvendo mulheres fora de casa), de pós-graduações quase permanentes (“gurus” dizendo que é necessário para manter a “empregabilidade”), de apelos ao consumo de bens substitutivos de gratificação (quantas pessoas não trocam o sexo pelo consumo?) Há também uma dificuldade crescente das pessoas encontrarem parceiros, o que desemboca em redes sociais para esse fim que não chegam a substituir a facilidade emocional do passado : os parentes arranjavam os compromissos e pronto. E há todo o estresse cotidiano.

Excesso de liberdade e de opções é bom, mas leva a incertezas e indefinições. É claro que eu não sou cego nem surdo e vejo e ouço o bombardeio de apelos sexuais que é comercializado. As mídias são hoje onipresentes e fazem isso. Mas somente eu acho que isso tudo acaba substituindo o sexo real?

Acho que não devemos tentar resolver a adultização precoce para sexo sem observar a simultânea infantilização tardia para a vida social.

Luis Nassif

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