Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“Cream”: a estrada da história das invenções está coberta de cadáveres, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

O que aconteceria se um cientista descobrisse um creme capaz não só de tirar manchas do rosto em questão de segundos, mas que também fosse capaz de produzir mágicos efeitos colaterais? – curar doenças, acabar com a fome, a pobreza, a morte, a tristeza e até fazer crescer florestas em desertos e despoluir o ar e rios. Todos ficariam felizes… menos algumas pessoas cujo poder depende da deliberada fabricação da escassez para a criação de valor e lucro – e por isso a estrada da história das invenções seria coberta por cadáveres. Esse é o tema dessa pequena fábula contemporânea, o curta “Cream” (2017) David Firth, conhecido pela série de animação de humor negro e terror psicológico “Salad Fingers”. Com surrealismo e um humor politicamente incorreto que lembra “South Park”, Firth introduz o espectador às principais teses do ativismo-conspiratório: as descobertas científicas filtradas ou censuradas pelas necessidades mercadológicas e a grande mídia como a principal ferramenta de engenharia de opinião pública.

Desde que nos anos 1990 estouraram as animações trash, propositalmente toscas e surreais como Os Simpsons ou South Park, a evolução desse subgênero tem se mostrado constante e sem perder o gás. Em muitos aspectos podemos considerá-las doentias, estranhas, ofensiva e politicamente incorretas. 

Mas justamente por essa renuncia ao realismo e verossimilhança (parâmetro nas produções em live action no cinema comercial), permite aos seus roteiristas e diretores uma imensa liberdade criativa. E também crítica.

Principalmente com o advento do crowdfunding no qual fãs patrocinam produções de artistas. Como no caso do curta Cream de David Firth, financiado através da plataforma de mecenato virtual chamada Patreon. 

Criador da famosa série de animação Salad Fingers (2004, com muito humor negro e terror psicológico), no curta Cream David Firth dá vazão às convicções ativistas, políticas e de crítica social: como a conversão da ciência em tecnologia muitas vezes pode se reverter contra os interesses do Capitalismo e do mercado; como a criação deliberada da escassez e da miséria vira uma ferramenta de produção de valor no mercado; e o papel crucial da mídia na formação de opiniões que reforcem essa ordem.

 

O Curta

Cream parte de uma premissa surreal: um cientista descobre um creme que praticamente conserta tudo: de remoção de manchas no rosto em segundos até alterações plásticas – pessoas feias que ficam lindas; com a aplicação do creme em questão de segundos o braço perdido é reconstituído, pessoas doentes nos leitos dos hospitais instantaneamente são curadas; pessoas feias ficam lindas como modelos de revista.

Injetado no cérebro, instantaneamente pessoas encontram uma solução para qualquer problema. Na medida que o curta avança descobrimos que os benefícios são praticamente infinitos: aplicados em alimentos, estes se multiplicam e transformando a descoberta na solução para a fome mundial. Imagine então o creme aplicado ao dinheiro…

Descobrem-se maravilhosas aplicações ecológicas: despolui rios, acaba com desertos fazendo crescer densas florestas.

E se alguém mergulhar numa piscina cheia com o creme milagroso? Há uma melhora física, mental e espiritual tão imensa que o indivíduo alcança o zênite da perfeição absoluta: transforma-se em um ser de energia de luz tão pura que transcende como um raio em direção ao espaço.

As ramificações das aplicações do creme são divertidas, criando situações hilárias. E o estilo de animação simplista utilizando camadas de colagens de fotos e desenhos torna as situações ainda mais surreais. 

No início do curta acreditamos que os benefícios do creme são apenas cosméticos, supérfluos. E que o argumento de Cream é fazer uma crítica às atitudes sociais e midiáticas em relação à beleza e o sucesso.

 

Mas logo percebemos que os efeitos do creme vão muito além da estética: tendem para os campos da ecologia, economia e política. É a partir desse ponto que o curta começa a adotar um tom mais sombrio: tanta fartura, saúde e perfeição livremente oferecida para todos começam a incomodar algumas pessoas muito poderosas – sem escassez, doenças, fome e tristeza, como ficariam os mercados farmacêuticos, financeiro etc.? Afinal, o valor ótimo de qualquer mercadoria é produzida pela sua escassez no mercado – o momento em que há muita demanda  para pouca oferta, agregando valor à mercadoria.

O curta começa a adotar um tom ativista-conspiratório, no qual membros da elite mundial (representada por indivíduos anônimos em mansões e iates no meio do oceano) decidem em conversas telefônicas acabar com toda aquela festa que põe em perigo o princípio basilar do Capitalismo: o valor da mercadoria.

E como fazer isso? Utilizando a grande mídia para fazer a opinião pública alterar drasticamente a percepção positiva em relação ao creme.

No curta Cream, David Firth introduz de forma divertida o espectador em dois temas muito sérios no atual ativismo-conspiratório:

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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