O culto do mistério, por Luis Nassif

Milton Nascimento, dona Lilia e os mistérios que envolvem a história de vida de um dos gênios da MP

Foto: Facebook Milton Nascimento

Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 02 de fevereiro de 2003

O culto do mistério

O arranjo começa com acordes de sopros, seguidos por celos ao fundo. Algumas notas ficam presas aos celos, como ecoando no fundo da memória. Depois da introdução, entram os sons cadenciados de um violão e de um piano preparando a entrada dos demais instrumentos.

Quando a música inicia, piano, oboés, flautas, celos se juntam, tal qual Leo Peracchi ensinou. O arranjador é o discípulo Eumir Deodato, o gênio precoce que cedo nos abandonou por uma carreira vitoriosa nos Estados Unidos.

Do meio das cortinas sonoras, emergem duas das maiores vozes da música brasileira, Milton Nascimento e Elis Regina, renascida na voz da filha Maria Rita Mariano.

A música “Tristesse” (Milton Nascimento e Telo Borges) não é para ser ouvida sóbrio. Faz parte do CD “Pietá”, o último lançamento de Milton e mostra o gênio no auge da sua força criativa, em uma das mais lindas músicas brasileiras de todos os tempos. Pensei cá comigo: o criador não morreu.

A primeira vez que vi o mestre pessoalmente foi muitos anos atrás, lá para o início dos anos 90, ele à beira de uma piscina em um hotel de Angra dos Reis. Cheguei devagar, para pedir a benção. Sua timidez aguçou a minha, balbuciei alguma coisa daqui, ele resmungou outra dali e bati em retirada.

De longe, fiquei observando o negro tímido, fechado em copas, que parecia fera acuada quando qualquer pessoa tentava romper sua intimidade, ou ao menos dar um alô. À noite, no show que apresentou, parecia um dínamo. Os baianos haviam redescoberto os ritmos transcendentais do país.

Mas o que Milton Nascimento produzia naquele palco de hotel ia além. O meu batimento cardíaco, pelo menos, passou a funcionar de modo estranho, como se a batida do coração tivesse sido capturada pela pulsação dos ritmos que vinham do palco. Na platéia, de uma moçada de 15 anos a cinquentões, todos pareciam hipnotizados pela eletricidade que emanava do palco.

Na manhã seguinte, Milton não apareceu na piscina. Deixei de lado a economia, a palestra que iria preparar, e fiquei imerso em indagações, tentando adivinhar os mistérios, a história que haviam moldado aquela energia, o sofrimento que, às vezes lamento, às vezes explosão, produzira a mais significativa obra da música brasileira, pós Tom Jobim.

Não consegui, ninguém conseguiria decifrar o culto do mistério de Milton.

Depois, veio a doença, a perspectiva do fim, a quase despedida com os “Tambores de Minas”, a recuperação, o show histórico com Gilberto Gil. A cada novo lançamento, por conta do que escrevi sobre ele, o mestre me manda um exemplar autografado com palavras de carinho discreto, próprias dos de Minas. E a cada encontro casual, como no Festival de Avaré, em que se homenageou os 25 anos do Clube da Esquina, o bloqueio da dupla timidez sempre impede mais do que um “tudo bem?”.

A música inicial do CD, “A Feminina Voz do Cantor”, de Milton e Fernando Brandt, revela parte do mistério. “Sem as vozes que ele ouviu / quando era aprendiz / como pode sua voz ser uma Elis?”.

No “Pietá”, o mestre mergulha no passado, cutuca as feridas, sugere parte da história. Na contracapa, sua homenagem à mãe de criação, a mulher que lhe trouxe os sons das cantoras que moldaram sua voz, conta pouco, porque contar mais não é necessário.

“Eu que nasci no Rio de Janeiro, em Laranjeiras, fui levado de volta à Minas, terra natal de minha mãe de sangue, quando ela se foi. Era um garoto de pouco mais de um ano e fui recebido com muito carinho pela minha família, mas alguma coisa dentro de mim havia se partido, e sangrava. Pietá, para mim, é minha mãe de criação Lilia que, mesmo sem nenhum contato ou notícia minha durante muito tempo, pressentiu que algo de errado se passava comigo e veio me socorrer. Foi ela quem cuidou de mim e continuou a cuidar por toda a vida, junto com meu pai Josino”.

O véu se levanta pouco, e volta a se fechar. E, no duo de Milton e Elis Mariano sobressai o vulto de dona Lilia, guiando o cantor maior pelas fendas e sombras da vida, para o destino dolorido e complicado que o mundo reserva para os gênios, e Minas relega os seus.

27 Comentários

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  1. Parabéns, Nassif, por esta bela homenagem a um dos maiores gênios da música brasileira de todos os tempos. Amo a obra de Milton e sua história ímpar. Nassif, suas palavras me emocionaram às lágrimas. Gratidão. Grande abraço.

  2. Luiz Nassif, alegra-me muito as suas palavras, e a elas gostaria de endossar como minhas. Milton Nascimento, sua música, sua voz, seu canto para mim são a expressão do Mistério, do Mistério Maiúsculo e Profundo que envolve todas as coisas.Seu canto é potente, etéreo, sublime.Como toda arte verdadeira, transcende o artista. Milton Nascimento: um milagre entre nós!

  3. SEMPRE fiquei intrigado com ” tristesse”. Maria Rita mostrou a que veio logo na estreia. E Milton compôs um dueto dos melhores da música mundial pelo pouco que eu conheço. Bea homenagem a sua, conhecedor que você é das coisas. Parabéns!

  4. Notável, seu texto comentando a jornada do gênio, missionário da música. Milton Nascimento para mim já é lenda, o maior voz do planeta. Cantor, compositor e ser humano especial. Milton é de todos os tempos. Deus q o abençoe abençoe sempre. Te amo Bituca.

  5. Por muitos anos levei o DVD com o filme Jules et Jim, comprado num bouquiniste, a todos os shows do Bituca na esperança de poder chegar perto dele e entregar. Precipitadamente entreguei à apresentadora no final da linda homenagem ao Fernando Brant no Inhotim quando virou mais uma estrela no céu. A timidez também me atrapalhou, mas como disse o FB em Filho (CD Ânima), “Toda vida existe para iluminar os caminhos de outras vidas que a gente encontrar.” Bituca, Fernando e Nassif estão sempre colocando mais luz no meu!

  6. Um reconhecimento totalmente merecido, que encanta pela qualidade do texto e pela honrosa homenagem que Nassif presta ao “transcendental e fora de série” Milton Nascimento. O incógnito e magnífico mistério artístico de Milton, que se reflete em suas criativas obras primas musicais e em boa parte de suas apresentações e tímidos comportamentos, também estará eternizado no corpo de todo o fantástico conjunto da obra musical e cultural do querido Bituca.

  7. Que texto maravilhoso! Muita sensibilidade, revelando a delicadeza da genialidade tímida de Milton Nascimento.
    Milton é tão singular que desperta emoções únicas em cada um de nós.

  8. Nassif, espetacular dissertação sobre Milton, pra min,o maior cantor e compositor que o Brasil já produziu, você vc conduziu as palavras do texto como quem passeia pelas montanhas de Minas. saudades da terrinha!

  9. Obrigado por essa pérola que nós permite respirar em meio a ditadura do mercado e políticos sem poesia cegos para Adélia Prado e fraudadores contumazes que almejam privatizar a educação e tomar de assalto o congresso. E preciso mais filosofia, na economia e na engenharia se não a caminhada para o transcendental vai ficar cada fez mais longa.

  10. Obrigada por seu afago e agradecimento conseguir chegar até nosso Milton Nascimento. Jamais precisamos tanto de Milton e Miltons como agora, ser tão grande e se achar absolutamente comum. Esse painel atual de duras vaidades, egos inflados de bolhas de sabão, nos agarramos em Miltons, obrigada de coração Milton Nascimento tbm por nos educar mostrando como é ser grande.

  11. Belíssimo texto Nassif. Belíssima homenagem a Milton. Maravilhoso ler toda essa emoção expressa na escrita e perceber que nos shows de Milton o sentimento que temos é exatamente assim.

  12. Parabéns Nassif.
    Pois a mesma profundidade e sensibilidade ao escrever sobre economia/política, vc também aplicou nesta singela homenagem e reverência a estes gênios da nossa cultura; emocionante!

    Felicidades e muita saúde!

  13. Exagero desnecessário pensar que qualquer cantor é gênio. Milton é apenas um bom cantor. Suas habilidades como letrista foi apenas para produzir TRAVESSIA .SO ISSO E NAFS MAIS. É MODA DIZER QUE tal jornalista é gênio, tal letrista é gênio, tal cantor é genio

  14. Parabéns Nassif, seus traços soam poesia ao falar do nosso grande Milton de Nascimento carioca e de sangue mineiro.
    O artista que melhor descreve com sua voz o jeito de ser do heterogêneo povo brasileiro.

  15. Tenho dito que quando Milton morrer se tornará santo. Ouço sua voz e me sinto no céu. Ele possui uma atração inexplicável, aliás o que é belo não necessita entendimento. A beleza nos toca sem se explicar e Milton é de uma beleza suprema.

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