Um dia as meninas serão devoradoras de homens em “Grave”, por Wilson Ferreira

“Uma história de amadurecimento de uma personagem desgarrada em uma hora e meia manchada de sangue”, descreve a diretora francesa Julia Ducournau

Um dia as meninas serão devoradoras de homens em “Grave”
Por Wilson Ferreira

“Uma história de amadurecimento de uma personagem desgarrada em uma hora e meia manchada de sangue”, dessa maneira a diretora francesa Julia Ducournau define seu filme “Grave”(Raw, 2016), co-produção França/Bélgica. Se “Corra” (“Get Out”, 2017) foi um filme de terror racial, aqui em “Grave” encontramos uma espécie de terror de gênero: como se a protagonista descobrisse a sensação de poder no cruzamento da linha de um tabu. Ducournau parece querer dizer às espectadoras: meninas, um dia vocês serão devoradoras de homens! Uma brilhante e inocente adolescente entra num curso superior de veterinária e se defronta com um sistemático trote de humilhação e doutrinação dos veteranos.Até despertar algo de primitivo nela – uma fome insaciável que nunca percebeu estar lá. Uma violenta narrativa de auto-afirmação e descoberta de identidade através de sangue, canibalismo e luxúria.

 

Termo popularizado pelo antropólogo alemão Arnold van Gennep, “ritos de passagem” são celebrações da mudança de status de um indivíduo no seio de uma comunidade. Ritos ligados a nascimento, morte, casamento. Já em nossa sociedade moderna, os ritos como os “trotes”, comemorando a entrada dos novos egressos na universidade, e as celebrações de formatura são ritos de passagem à vida adulta.

Em sociedades ditas “primitivas” eram cerimônias especiais que representavam a progressiva aceitação e participação na sociedade – nascimento, puberdade, menstruação, o abate do primeiro animal etc.

Embora ritos de passagem ainda permaneçam na atualidade, perderam sua natureza mítica ou religiosa – assumiram uma natureza ao mesmo tempo performática e de resignação ao grupo, à corporação ou à sociedade como um todo. Primeiro lugar, não importa mais o evento em si, mas a sua eficácia, performance, eficiência ou desempenho – colocação no vestibular, processos competitivos etc.

E segundo, a resignação diante da autoridade – humilhação, bullying e violência como a quebra das últimas resistências que o indivíduo poderia esboçar contra a sociedade – visível desde trotes universitários até ritos de passagem televisivos para conquista de prêmios nos inúmeros formatos de reality shows.

O filme Grave (Raw, 2016), sobre a estória de uma brilhante e inocente adolescente que entra num curso superior de veterinária e se defronta com um sistemático trote de humilhação e doutrinação dos veteranos, é uma abordagem surpreendente desse tema tão revisitado pelo cinema: Código de Silêncio (2017), a franquia American PieDias Incríveis (2003), Universidade Monstros (2013), Superbad (2007), entre outros inúmeros.

Em Grave não há resignação ou, pelo menos, a subserviente internalização das regras do jogo para ser aceita no novo mundo adulto que se abre. Ao contrário, há progressiva afirmação da sua verdadeira identidade como fosse a celebração do poder feminino. Mas com resultados brutalmente sangrentos, combinando o horror corporal de David Cronenberg com o surrealismo berrante de David Lynch.

Em muitos aspectos, lembra a gnose selvagem de Dente Canino (2009 – clique aqui) do grego Yorgos Lanthimos: filhos submissos de um pai que os mantém isolados do mundo exterior, descobrem suas naturezas selvagens e se voltam contra a ordem familiar como um cão que morde a mão do próprio dono.

 

O Filme

Grave acompanha Justine (Garance Marillier – o nome da personagem tem uma evidente alusão ao clássico das histórias eróticas escrito por Marquês de Sade em 1791) viaja, acompanhada pelos seus pais, para uma faculdade de veterinária na qual foi recentemente aceita. Seus pais também são veterinários e formados naquela escola, seguindo uma longa tradição familiar. Além de manterem uma linhagem de vegetarianismo e de militância pelos direitos dos animais.

Lá na faculdade encontrará sua irmã Alexia (Ella Rumpf), a ousada líder veterana que receberá os calouros com uma série de rituais ruidosos e sádicos.

O próprio campus da faculdade parece sempre ser sombrio e hostil. Durante os raros momentos em que os aspirantes a veterinários saem dos prédios sujos e desorganizados, o céu sempre parece estar nublado e ameaçador.

Depois de um ritual de trote em que os novatos foram cobertos de sangue animal despencado do alto direto para suas cabeças (evidente repaginação do clássico Carrie: a Estranha), Justine é forçada a comer um rim de pato cru. Ela resiste, alegando ser vegetariana. Mas Alexia é ambiciosa e obriga a irmã a comê-lo, para ser aceita no grupo.

A náusea instantânea leva, mais tarde, a erupções cutâneas por todo o corpo. Mas, aos poucos, ela descobre que a minúscula mordida despertou algo de primitivo nela – uma fome insaciável que nunca percebeu estar lá.

Em pouco tempo, Justine se vê sentada diante da geladeira de seu dormitório, no meio da noite, rasgando com os dentes um pedaço de peito de frango cru. Sob o olhar perplexo do seu companheiro de quarto, o seu único amigo, um estudante gay chamado Adrien (Rabah Nait Oufella). Mas isso não será suficiente para satisfazê-la.

O ápice, a descoberta da sua verdadeira obsessão alimentar, é quando sua irmã perde um dedo em um acidente. Enquanto aguarda a chegada dos paramédicos, Justine degusta a bizarra iguaria como se o dedo da própria irmã fosse, literalmente, um finger food.

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Redação

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