Uma brasileira chamada Anná, por Daniel Costa

No álbum Brasileira, cantora propõe viagem pela música popular produzida no país ao longo dos últimos 100 anos

A cantora Anná, que lançou recentemente o álbum Brasileira. Foto: Facebook Anná

Por Daniel Costa*

Dia desses ao navegar pelos mares revoltos das redes sociais, entre aquele olhar desatento e um like automático, vejo no Facebook um texto que de cara despertou minha atenção, nele o autor recordava como era percorrer as noites boêmias da Vila Madalena por volta de 2012, 2013 e como tudo se transformou de lá pra cá.

Para aqueles que flanavam principalmente pelo entorno das ruas Horácio Lane e Belmiro Braga percebe que realmente muita coisa mudou por ali, daqueles tradicionais bares apenas o Ó do Borogodó e o tradicional Bar do Nelson ou do corno para os mais íntimos resiste. Não temos mais o velho Centro Cultural Rio Verde, o Kolombolo Diá Piratininga fez suas malas tomando o rumo da Bela Vista, o Pau Brasil e sua entrada discreta já não mais nos convidam para o samba, assim como as poderosas rodas do Tamarineira.

Ao mesmo tempo que uma espécie de nostalgia e tristeza toma conta do  pensamento, também surge uma sensação de satisfação ao ver que esses lugares geraram bons frutos, inclusive a personagem central das próximas linhas.

A liturgia do samba nos ensina que a roda é quase um espaço sagrado, de conexão entre a terra e a nossa mais pura ancestralidade, assim devemos ter todo respeito com aqueles que ali estão e chegar na disciplina, como nos mostram os “números baixos”, ou os baluartes desse universo, e foi assim chegando na disciplina, pedindo para dar uma canja aqui, outra ali, que uma jovem nascida em Mococa foi conquistando seu espaço e acima de tudo aprendendo, seja convivendo com grandes mestres da noite paulistana, seja com aqueles que assim como ela ainda estão traçando seu caminho.

O resultado de boa parte desse aprendizado pode ser percebido ao ouvir o novo álbum da cantora e multi-artista Anná; antes de prosseguir deixo um pequeno esclarecimento aos leitores, ao chamar nossa personagem de multi-artista automaticamente poderíamos dispensar o título de cantora, porém a força e autenticidade trazida pelo canto e interpretação é tamanho que devo sim fazer essa distinção. 

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Com o álbum Brasileira, Anná propõe uma viagem pela música popular produzida no Brasil ao longo dos últimos 100 anos sem partir para a solução fácil de uma abordagem linear, como a própria cantora e compositora explicou, sua intenção é propor essa viagem de forma espiral, fazendo a junção do passado, com o presente e já prospectando o futuro.

Em um ano repleto de efemérides, Brasileira surge como uma espécie de atualização e afirmação da antropofagia trazida a público pelos modernistas em 1922. Muitos artistas já vieram com a proposta de fazer tal síntese, porém em muitos casos a empreitada acaba sendo mal sucedida, principalmente pelo excesso de modernidade e falta de tato com o “passado”, com a memória.

Felizmente nossa personagem não padece de tal problema, como poucas cantoras de sua geração Anná domina como poucas a arte de interpretar sambas, forrós e os mais variados ritmos brasileiros. Em suas andanças pela noite paulistana Anná soube beber na fonte aprendendo com grandes nomes como Toinho Melodia, grande figura do samba paulista que dominava como poucos a arte de cantar forró, herança da sua terra natal; Geovana, a nossa deusa negra do samba que por sinal é reverenciada pela artista ao figurar na capa do álbum e Raquel Tobias, talvez uma das maiores intérpretes de samba da Paulicéia, a qual Anná surge como uma verdadeira discípula.

O álbum abre com “Rito de Passá”, um verdadeiro pedido de licença e proteção aos orixás, encantados e seres que compõem o nosso imaginário para a imersão proposta pela artista no cancioneiro popular, o rito que é  composição da Mc Tha, traz a participação da rapper Souto MC e da sambista Dessa Brandão.

Viajando através de sua espiral do tempo Anná traz em seguida sua versão para “Tico -Tico no Fubá”, clássico do pianista Zequinha de Abreu, a versão da cantora propõe uma fusão entre o choro e o pagode baiano, na sequência somos presenteados com a versão de “Valdineia”, clássico do compositor baiano Riachão.

Para o ouvinte mais desatento a escolha da faixa soaria como algo natural, afinal nada melhor que um samba do mestre baiano para dar sequência a releitura proposta na faixa anterior, porém fazendo jus ao caráter antropofágico do disco, Anná funde na faixa o samba com o funk através da participação de algumas integrantes do grupo Samba de Dandara e da pernambucana Luana Flores.

O disco ainda traz a canção “Somos Resistência” de Girlei Miranda, usando como base a percussão sampleada dos baianos do Olodum, a faixa, além de transportar os ouvintes para os anos 90 mostra como a ancestralidade, as raízes da África permanecem no canto e no som dos tradicionais blocos afros da Bahia.

Brasileira, traz ainda quatro canções autorais, “Tanta Gente” e “Me Cuidar”, composição feita em parceria com  Amanda Magalhães que participa da faixa  propõe ao ouvinte uma viagem dos anos 60 até os 90, percorrendo uma trilha que vai do samba rock ao forró, indo da já citada Geovana ao rei do baião Luiz Gonzaga, passando pelo pagode dos anos 90, deixando o recado que em tempos de efemeridades, de relações às vezes rasas, devemos sempre olhar para nós mesmos e nos  priorizar.

O álbum traz ainda “Ô Ano Doido”, funk frevo com a participação da pernambucana Flaira Ferro e “Volver”, canção em inglês e espanhol que conta com a presença das cantoras Loreta Colluci e Sarah Roston, cada faixa a sua maneira nos mostra bem mais que produções com um simples sotaque vanguardista.

As duas faixas são a síntese do que atravessamos, e seguimos atravessando, enquanto indivíduos e sociedade, principalmente ao longo dos últimos dois anos.

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Com seu álbum, Anná nos presenteia não somente com a prometida viagem em espiral, mas também com a atualização do ideário antropófago forjado pelos modernistas, atualizado pelos tropicalistas e desde então ressignificado por diversos músicos, artistas, autores e afins.

O disco com certeza ainda não é o ápice criativo da nossa artista, porém é mais um passo na construção de uma sólida carreira que ainda nos oferecerá muitas canções de qualidade. Seja no samba, no forró, no funk, no tecnobrega, na tradição ou na vanguarda Anná nos mostra que o aprendizado nas noites da Vila, aliada a sua originalidade e personalidade forjaram uma artista de primeira grandeza.

Por fim gostaria de compartilhar uma  última impressão que tive ao ouvir Brasileira: em 2003, momento em que o Brasil começava a viver uma nova fase, onde nitidamente a esperança havia vencido o medo, o compositor e cantor Francis Hime lançou o álbum “Brasil Lua Cheia” que buscava fazer um balanço do Brasil dos últimos quarenta anos.

O álbum, além de tal balanço, trazia nas composições de Hime e seus parceiros a esperança dos tempos que se anunciavam. Passados vinte anos entre muitos erros, acertos, golpes e tropeços, o disco de Anná tem tudo para ser a trilha desse novo momento de esperança prometida para o Brasil de 2023.

*Daniel Costa é graduado em História pela UNIFESP, compositor e integrante do Grêmio Recreativo de Resistência Cultural Kolombolo Diá Piratininga.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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