Uma crítica ao livro O Bom Soldado Švejk, de Jaroslav Hašek

Do Ípsilon.pt

Político até dizer chega

O Bom Soldado Švejk
Autoria: Jaroslav Hasek
Tradução de Lumir Nahodil Tinta da China

Crítica Ípsilon por: Isabel Lucas

Diz-se “xeveique”. A nota é do tradutor. É a pronúncia correcta de um nome que designa uma personalidade insólita, subversiva, com longa carreira na literatura, viral e contagiosa – até fora das letras. Diz-se “xeveique”, mas escreve-se Švejk e nasceu para ser dado em fascículos no ano de 1923, o mesmo em que o seu criador, Jaroslav Hašek, morreria vítima de uma paragem cardíaca sem tempo de pôr um ponto final naquela que seria uma das obras mais hilariantes e nostálgicas, subversivas e pacifistas que a literatura foi capaz de conceber.

O Bom Soldado Švejk, de Jaroslav Hašek, conhece por fim a justa edição em português, tão completa quanto possível, dado tratar-se de uma obra inacabada. A versão anterior, publicada pela Europa-América, não ia além da primeira parte, pouco mais de 200 páginas de um volume que agora ultrapassa as 800 e foi traduzido do checo por Lumir Nahodil para a colecção de humor da Tinta-da-China, dirigida por Ricardo Araújo Pereira. Mesmo a tempo de entrar para a lista dos acontecimentos literários de 2012.

Contemporâneo de Franz Kafka (o autor de O Castelo e de A Metamorfose morreu em 1924), Hašek desmonta de forma tão ou mais corrosiva a máquina do poder e a sua mesquinhez, só que pelo lado do riso, expondo-a a um ridículo desarmante e criando para o efeito a figura de um soldado, Švejk, “que tendo há anos abandonado o serviço militar, depois de definitivamente ser declarado idiota pela junta médica militar, ganhava o seu sustento com a venda de cães, feios monstros de sangue impuro, aos quais ele falsificava as árvores genealógicas”. Vamos encontrar Švejk em Praga, no momento em que é informado pela sua mulher-a-dias da morte do arquiduque Francisco Fernando, em Sarajevo – uma e outra cidade faziam então parte do imenso império austro-húngaro. Perante o facto, e depois do inevitável espanto, Švejk atreve-se a avançar com a hipótese de uma guerra. “A guerra é inevitável”, dirá depois de um “trago de dimensões épicas” numa cervejaria, em converseta com o cervejeiro Palivec e o polícia Bretschneider, protótipo do bufo ao serviço de uma bandeira e de um hino que Švejk, mais uma vez, admite recriar ofensivamente à força do álcool. Perante os factos, o polícia prende Švejk e Palivec, este por ter retirado da parede a imagem do Imperador. A justificação – “cagavam nele as moscas” – não só não convenceu Bretschneider como o provocou.

O que se segue é um festival em que o pícaro e o absurdo andam a par da crítica mais feroz à guerra e às artimanhas do poder. Hašek, anarquista, filho de um matemático que nunca se deu bem na vida e o deixou órfão aos 13 anos, fez da sua curta existência uma luta contra as instituições, sobretudo as que representavam o império austro-húngaro, colocando-se do lado dos defensores da independência checa. Meio vagabundo, foi jornalista e escritor que apostou numa obra única – apesar das centenas de pequenas obras -, pensada para ser publicada em seis volumes. Morreu aos 40 anos, fisicamente debilitado, incapaz ele próprio de escrever e ditando as últimas páginas deste O Bom Soldado Švejk, que não seriam as que ele imaginou como derradeiras.

Escrito sempre num tom jocoso, com a linguagem tratada sem os pudores associados à literatura de então – “gente que se incomoda com uma expressão forte é gente covarde, visto que a vida real surpreende”, escreverá no posfácio à primeira parte -, o livro assenta na suposta idiotice de Švejk, homem que se confessa “político até dizer chega”, numa estupidez que nunca se sabe se é inata ou um finíssimo artifício de inteligência do soldado que decide ir servir na Primeira Guerra Mundial de cadeira de rodas, devido ao reumatismo de que supostamente sofre. É homem que começa qualquer dialogo com a autoridade com a expressão “declaro obedientemente”, e que se sente agradecido por passar pelo um manicómio onde há liberdade para se ser tudo o que se quer. Essa passagem é uma das mais delirantes deste livro, traduzido a partir da 12.ª edição (no original, dois volumes de 480 páginas cada), editada em 1946. Um ano depois de o nazismo abandonar o território checo, antes da ocupação comunista.

O problema de falar ou de escrever sobre Švejk é que há a tentação de citar cada frase, de contar cada uma das histórias e aventuras que saem da boca do soldado de forma desenfreada – como se também a tagarelice fosse contágio -, numa tentativa, sempre defraudada, de revelar a perícia com que Hašek dominava a língua e os dialectos daquele imenso império onde imperava o alemão. Uma dor de cabeça para o tradutor, que assume aqui que construiu um léxico próprio para poder passar todas essas nuances.

Domínio exímio é também o da arte do humor. No caso, no que o humor tem de mais colado à alma. A gargalhada sai com a inquietude de quem, ao rir, percebe que ela é forma de reagir e de suportar a guerra e uma autoridade que não pode ser contestada. Nada então como banalizá-la, desmontando-a e às suas tragédias. Eis a humanidade e o seu grande absurdo. E quem melhor para denunciar do que um idiota, um anti-herói que inspirou por exemplo Joseph Heller a escrever outro clássico da guerra, já na década de 40: Catch 22.

Hašek conseguiu mais do que aquilo a que se propôs. Não apenas que a palavra “Švejk” se tornasse “um novo insulto na florida grinalda dos impropérios” e com isso enriquecesse a língua checa, mas que o insulto “Tu és tão parvo como o Švejk” soe a algo próximo do elogio.

Luis Nassif

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