Acervo on-line registra ciclo virtuoso de gestões municipais brasileiras entre 1980 e 2000
Entre o início dos anos 1980 e o final dos anos 1990, o Brasil vivenciou uma fase de inovações nas administrações municipais de várias cidades. As Prefeituras das cinco regiões do País colocaram em prática programas políticos que abrangiam temas variados e pautados numa perspectiva mais democrática de cidade, incluindo descentralização administrativa, conselhos populares, integração de transportes, tarifa social e tarifa zero, agricultura urbana, segurança alimentar, equipamentos públicos, além de iniciativas em saúde e educação.
Com o objetivo de resgatar registros e memórias das inovações e experiências vivenciadas nesse período é que se originou a pesquisa de doutorado As prefeituras democráticas e o ciclo virtuoso da política urbana no Brasil: 1980 – 2000, de Pedro Rossi, arquiteto, urbanista e pesquisador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LABHAB) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design (FAU) da USP. A orientação da pesquisa é de Erminia Maricato, arquiteta e urbanista e Professora Emérita da FAU.
Durante a pesquisa, Rossi reuniu uma grande quantidade de materiais impressos – de cartazes, panfletos a fotografias e jornais – e audiovisuais do período que o pesquisador caracteriza como ciclo virtuoso da política urbana brasileira. Para disponibilizar esse acervo e a memória desse período, ele construiu a plataforma digital Ciclo Virtuoso, que está disponível desde o dia 3 de outubro para acesso público e gratuito.
“Ao mesmo tempo em que fazia esse exercício de organizar a bibliografia e estudar para minha tese, estava gerando um repositório virtual de todo esse material que foi analisado”, comenta Rossi. “Ao invés de deixar isso numa pasta privada, no meu próprio computador, tivemos a ideia de colocar esse material em um repositório digital.” A partir desse momento, Rossi e Erminia passaram a dedicar um tempo da pesquisa à formulação dessa plataforma e compreender de que forma outros acervos virtuais estavam sendo construídos.
“Esse processo me ajudou a entender que a nossa pesquisa também atende a uma demanda muito forte hoje, que é atender às políticas de memória”, complementa Rossi sobre a construção e a idealização da plataforma. “O site atual é só um um repositório inicial a partir dessas pesquisas que estamos fazendo agora, mas a ideia é que, a partir de estudos e trabalhos de outras pessoas, o repositório seja complementado, colocando-se como um memorial dos programas e do que já foi vivenciado, inclusive, para atualizar um pouco dos nossos atuais paradigmas.”
Pedro Rossi, doutorando da FAU USP, criador da plataforma Ciclo Virtuoso – Foto: Arquivo Pessoal
A ferramenta escolhida para o desenvolvimento foi o Tainacam, um software livre feito pelo Laboratório de Inteligência de Redes da Universidade de Brasília (UnB), com apoio da Universidade Federal de Goiás, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia e do Instituto Brasileiro de Museus. Ele é um plugin associado ao WordPress (sistema livre e aberto de gestão de conteúdo para internet) e não tem nenhum custo de instalação ou atualização, podendo ser usado, copiado, estudado, modificado e redistribuído sem nenhuma restrição. O Tainacam é utilizado por acervos vinculados ao Ministério da Cultura e instituições associadas à USP, como o Museu do Ipiranga.
Ciclo virtuoso da política urbana brasileira
O período entre os anos de 1986 a 2000 é compreendido pelo pesquisador enquanto ciclo virtuoso das administrações municipais brasileiras. Basicamente, trata-se de um momento histórico no qual diferentes gestões se viram alinhadas em prol de uma política mais igualitária e combativa às disparidades.
Durante o ciclo virtuoso, vários programas alcançaram repercussão no exterior, sendo implementados em outros países ou destacados em eventos internacionais da ONU-Habitat. Entre os mais celebrados, destacam-se o Orçamento Participativo, os Corredores de Ônibus e a Urbanização de Favelas.
A lista de municípios que integraram o ciclo é ampla e inclui grande parte das capitais brasileiras e o Distrito Federal. Destacam-se cidades como Porto Alegre, São Paulo, Vitória, Rio de Janeiro, Goiânia, Campo Grande, Brasília, Natal, Teresina, Fortaleza, Recife, Belém e Rio Branco.
O doutorando pontua que, apesar do período analisado estar compreendido entre os anos 1980 e 2000, durante um momento de redemocratização, ele é resultante e está inserido dentro de um contexto anterior, que impacta a forma que esse ciclo se dá. A grande movimentação de pessoas da área rural para a área urbana, entre os anos 1930 e 1940, é acompanhada de uma explosão demográfica nos centros e um movimento de urbanização deles.
Nesse cenário, uma parcela da população passou a ocupar regiões que não eram lugares de interesse do mercado, como regiões de mananciais e margens de rios. Isso porque esse contingente populacional que saía do campo e migrava para as cidades em busca de oportunidades de trabalho e melhores condições de vida não tinha acesso ao mercado imobiliário, que se concentrava em terras já urbanizadas.
Publicação da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano, durante a gestão municipal de 1989-1992, de Luiza Erundina (PT). O material é um registro da política habitacional e urbana praticada pela Prefeitura na época. No trecho, destaca-se o projeto de urbanização de Favelas – Imagem: Prefeitura Municipal de São Paulo/Ciclo Virtuoso
Jornal informativo publicado pela Prefeitura Municipal de Icapuí (Ceará), de novembro/dezembro de 1995. O documento debate a municipalização da educação, serviços de saúde, coleta de lixo, infraestrutura e desenvolvimento comunitário – Imagem: Prefeitura Municipal de Icapuí/Ciclo Virtuoso
Como consequência, na década de 60 os problemas urbanos se agravaram e a quantidade de habitações como cortiços e favelas aumentaram consideravelmente. Os movimentos sociais da época, muito influenciados por uma política de bem-estar social, começaram a desenhar caminhos para superar os desafios do crescimento urbano, como se observa com as políticas de Reforma de Base do presidente João Goulart. “Em 1964, aconteceu o golpe que instaurou uma ditadura que não só negou, como também reprimiu os movimentos de luta pela Reforma Urbana, pelo acesso à moradia digna e que atravessa o direito à cidade”, pontua Rossi.
Apesar da repressão e da interferência das lideranças da ditadura civil-militar nas eleições municipais, algumas experiências do ciclo virtuoso são observadas ainda nos anos 70, em cidades como Lages, em Santa Catarina, e Piracicaba, em São Paulo. Em Lages, por exemplo, sob a gestão do prefeito Dirceu Carneiro, a população tinha uma participação significativa em encontros culturais, associações e programas municipais, como o de medicina comunitária.
Clique no player abaixo para ver o filme Lages, a Força do Povo (1983), de Tetê Moraes – Vídeo: Reprodução/YouTube
Com o fim da ditadura militar e a redemocratização, as Prefeituras passaram a incorporar as práticas dos movimentos sociais na gestão. “Esses movimentos estavam superaguerridos no momento inicial dessas Prefeituras, fazendo com que a sua participação fosse muito importante na elaboração e na implementação dessas políticas, ao ponto deles executarem de maneira participativa esses programas”, diz o pesquisador. “A participação social foi uma grande chave de mudança.”
“No Brasil, nesse período, existe um movimento nas cidades, na esfera do poder local e que passa a formar uma rede nacional de luta por direitos”, salienta Erminia Maricato. “Essa rede nacional faz e encaminha um projeto de Reforma Urbana para os debates de elaboração da Constituição de 1988, na qual conquistamos a inclusão de dois artigos sobre cidades pela primeira vez”, afirma.
Algumas das experiências do ciclo virtuoso também vão além da redemocratização e do período do Ciclo das Prefeituras Democráticas. Algumas delas ocorreram nas primeiras décadas do século 21 em cidades como São Paulo (gestões de Marta Suplicy e Fernando Haddad), Araraquara (SP) e Maricá (RJ). Também se destacam os casos de João Pessoa e Conde, na Paraíba, sob as gestões de Ricardo Coutinho e Márcia Lucena.
Cartaz do projeto Goiânia Viva, uma iniciativa de participação cidadã promovida pela Prefeitura Municipal de Goiânia durante a gestão de Darci Accorsi (1993-1996) – Imagem: Centro Sérgio Buarque de Holanda, Fundação Perseu Abramo (CSBH/FPA)/Ciclo Virtuoso
Cartaz de divulgação da Prefeitura Municipal de Belém, de 1998, que promove o Orçamento Participativo, buscando envolver a população local na decisão sobre o uso dos recursos municipais – Imagem: Centro Sérgio Buarque de Holanda, Fundação Perseu Abramo (CSBH/FPA)
Sobre a experiência vivenciada, Erminia complementa: “É difícil de acreditar pela falta de memória coletiva deste momento”. A motivação para pesquisar esse tema nasceu justamente deste aspecto e que, segundo Rossi, dialoga com o próprio contexto atual do País. “Estamos vivendo uma escalada e retomada de uma política ultraconservadora acompanhada de um projeto de apagamento de políticas públicas que visam a superar desigualdades sociais”, afirma o pesquisador.
“A tese faz um pouco essa provocação, de olhar o período democrático e participativo que tivemos nas Prefeituras e recuperar essa memória”, diz Rossi. Erminia Maricato salienta a importância de projetos como esse: “Estamos vivendo um certo presentismo, de hipervalorização do tempo presente e do imediato, mas um povo que não tem memória, não é dono do seu passado, não consegue desenhar um projeto de futuro”.
Erminia Maricato, professora da FAU USP – Foto: Leonor Calasans/IEA-USP
O pesquisador comenta que a pesquisa não é uma tentativa de repetir o passado do ciclo virtuoso, uma vez que o contexto é totalmente outro, com uma estrutura dos movimentos sociais, quantidade de repasses e estratégias de comunicação distintas. “Recuperar essa experiência pode mostrar para as Prefeituras atuais que, enquanto as preocupações do dia a dia da população não forem atendidas o poder vai continuar concentrado nas mãos de poucos, assim como a renda perpetuando desigualdades”, comenta Rossi. “A proposta é ressaltar a importância dessa democracia do cotidiano e sinalizar caminhos para essa construção longa e coletiva de um outro futuro possível”, destaca a orientadora.
Navegando na plataforma
A plataforma Ciclo Virtuoso é de livre acesso e fácil uso com navegação por meio de páginas e seções. O repositório é dividido em: página inicial, acervo, mapa, vídeos e cronologia. Em todas as páginas, está presente a aba explicativa “Como Navegar?”, que explica de que maneira o usuário pode usar a plataforma. Há também o recurso de hiperlink a partir do ícone que representa uma pasta de arquivo digital, que, ao serem clicados, direcionam o usuário à coleção de documentos ou diretamente aos detalhes do item no acervo.
Na página inicial apresenta-se a proposta do site e o tema abordado no projeto para contextualizar o usuário sobre o que foi o Ciclo Virtuoso das Prefeituras. Nessa página também está disponível parte dos materiais para consulta, entre eles impressos e fotografias com legendas específicas.
Trecho da página inicial da plataforma Ciclo Virtuoso com folheto informativo da Prefeitura de Diadema, livreto informativo da Prefeitura de Londrina e das Prefeituras de Vitória e Belém- Imagem: Reprodução/Ciclo Virtuoso
No Acervo, é possível procurar itens por busca simples por termos; avançada, que direciona a termos e formatos mais específicos do material; ou por filtros. Estes permitem refinar a pesquisa com base em múltiplos critérios: tipo de documento, data de publicação, suporte do material, localização, gestão da Prefeitura, fase do ciclo e partido da gestão. Os resultados podem ser ordenados por categorias específicas também.
A página Mapa auxilia na geolocalização das experiências documentadas, oferecendo uma visão espacial das iniciativas. Aqui podem ser aplicados os mesmos filtros que são utilizados na busca na seção Acervo.
Em Vídeos, estão disponíveis os materiais audiovisuais coletados em ordem cronológica. Ao lado de cada item há uma breve explicação e contextualização.
Na página Cronologia, o usuário tem acesso a linhas do tempo interativas, organizadas por décadas e segmentadas a cada dois anos, com eventos destacados em cores diferentes para facilitar a navegação. Os eventos estão categorizados por temas. Ao passar o cursor sobre os ícones ou barras, você pode visualizar mais informações e acessar conteúdos e documentos vinculados.
A página está dividida em seis seções. A primeira delas é Panorama, geral do contexto histórico, com duas linhas do tempo, sendo uma do período da ditadura civil-militar e outra da Nova República – da década de 1980 até o início do século 21 –, com ênfase nas gestões municipais e seus contextos históricos. As outras cinco seções são dedicadas às gestões municipais das regiões do Brasil – Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul.
Trecho da linha do tempo Nova República (Redemocratização e Ciclo Virtuoso) e detalhe do marco da Criação do Fórum Nacional de Participação Social, no dia 1º de janeiro de 1990 – Imagens: Reprodução/Ciclo Virtuoso
A pesquisa As prefeituras democráticas e o ciclo virtuoso da política urbana no Brasil: 1980 – 2000 ainda está em fase de conclusão, com previsão de defesa da tese para o primeiro trimestre de 2025.
A autoria da pesquisa e desenvolvimento da plataforma são de Pedro Rossi, arquiteto e urbanista, membro pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) A Produção da Casa e da Cidade, do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LABHAB) da FAU e da Rede BrCidades. A orientação e a coordenação do projeto são de Erminia Maricato, arquiteta e urbanista, Professora Emérita da FAU que foi Secretária Municipal de Habitação de São Paulo, coordenou a criação do Ministério das Cidades, além de pesquisadora do INCT Produção da Casa e da Cidade e membro da Rede BrCidades.
Para saber mais, acesse a plataforma neste link. Acesse também a página do LABHAB para conhecer mais projetos do Laboratório.
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