Falta de financiamento reflete descaso do governo com política de desenvolvimento urbano

Presidente da Conam destaca que mais de 90% do déficit habitacional corresponde a famílias com rendimento até três salários mínimos.

da Fenae

Confederação Nacional das Associações de Moradores: Falta de financiamento reflete descaso do governo com política de desenvolvimento urbano

 

Em entrevista à Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), presidente da Conam destaca que mais de 90% do déficit habitacional corresponde a famílias com rendimento até três salários mínimos. Getúlio Vargas de Moura Júnior afirma que Confederação continuará atuando pela defesa da democracia, de direitos da população e contra privatização da Caixa: “O banco do povo e dos sem banco”

A conjuntura brasileira tem sido muito pesada para o povo; principalmente, para as comunidades das periferias. O encerramento ou a ausência de financiamento em saúde, educação, programas e ações sociais aprofundaram as dificuldades de amplas parcelas da população.

Esse cenário, que já era adverso, ficou ainda pior para os mais pobres com a disseminação da crise causada pela pandemia do coronavírus. A postura antidemocrática e a agenda de retirada de direitos sociais por parte do governo Bolsonaro agravam a situação. A Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), em defesa da democracia e dos direitos da população, luta contra o retrocesso representado pela política de austeridade de Paulo Guedes, “ministro da Economia de um governo com tendências fascistas”.

As reflexões são do presidente da Conam e membro do Conselho das Cidades, Getúlio Vargas de Moura Júnior. Em entrevista à Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa (Fenae), ele defende participação popular e controle social na elaboração de diretriz habitacional para o país, com a adoção de políticas públicas que as cidades precisam para tornarem justas e democráticas. “A falta de verba reflete o descaso do governo com a política de desenvolvimento urbano”, enfatiza.

De acordo com o presidente da Conam, a Emenda Constitucional (EC) 95/2016 contribuiu para o desmonte da política de desenvolvimento urbano no país. “O fim do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) foi um duro golpe na luta por moradia e fez com que o déficit habitacional retomasse a um patamar elevadíssimo, com o governo apontando solução com busca no mercado”, analisa.

Getúlio Vargas acha contraditória a ação governamental. Ele explica que mais de 90% do déficit habitacional corresponde a famílias com rendimento até três salários mínimos, estando na faixa 1 do MCMV. São as chamadas moradias de interesse social, destinadas às famílias com renda mensal de até R$ 1,8 mil.

O presidente da Conam defende que o país, a sociedade e os trabalhadores precisam fortalecer a Caixa 100% pública e o caráter social indiscutível da instituição. Na avaliação de Vargas, “a Caixa é o banco do povo e dos sem banco”. “É a Caixa que oferece, como nenhum outro, acesso da população mais pobre a uma diversidade de serviços”, completa.

Getúlio Vargas diz que essa política em favor do povo deve vir combinada com todo um esforço pela unidade, na busca pela construção de amplas frentes de resistência democrática, na defesa da Caixa e do patrimônio público. E conclui: “A defesa da Caixa — e contra a privatização ou o fatiamento de partes estratégicas do banco — é uma reivindicação histórica do movimento comunitário e de bairro”.

Confira a entrevista:

Como a crise do coronavírus afeta a população dos bairros das periferias do Brasil?

Getúlio Vargas – A pandemia do coronavírus tem várias dimensões. Primeiro, não se trata exatamente de uma nova crise, pois aprofunda a que o Brasil já vivia com o desemprego ou a falta de emprego, com a fragilização dos direitos dos trabalhadores e com a mudança recente nas regras para a aposentadoria, através da reforma da Previdência, prejudicando os que começam a trabalhar mais cedo, ganham menos e ficam grandes períodos sem carteira assinada. Enfim, é uma crise dentro da crise. É claro que essa situação afeta ainda mais os bairros e as comunidades periféricas do país, porque, muitas vezes, as pessoas trabalham de dia para comer à noite.

Então, no momento que é necessário o afastamento social, há pessoas que estão saindo até do mapa e não possuem cadastro. Hoje, no Brasil, existem milhões de pessoas que vivem sem documento ou cadastro. Como ainda há o agravante de o governo Bolsonaro dificultar o acesso à renda básica emergencial, aprofundando assim situações de vulnerabilidade, muitas pessoas não seguem as orientações sanitárias de isolamento social. Em muitas comunidades, inclusive, ficam complicadas as questões relacionadas à higiene e ao saneamento. Como exigir, por exemplo, em um barraco de uma ou duas peças, onde moram 6 a 7 pessoas, que exista o afastamento social necessário?

Então, com certeza, a população que mora nos bairros é a mais atacada e a que mais sofre os danos de uma pandemia como essa.

Mais Sistema Único de Saúde, menos coronavírus? Qual o significado dessa reivindicação para o movimento comunitário?

Getúlio Vargas – Essa reivindicação dialoga, intrinsecamente, com a realidade do movimento comunitário. Hoje, inclusive, a presidência do Conselho Nacional de Saúde está sob a responsabilidade da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), na pessoa de Fernando Zasso Pigatto, que é o diretor de Saúde da nossa entidade. Isso mostra a relação da luta comunitária com a pauta sanitária no Brasil.

Temos procurado fortalecer as ações do Conselho Nacional de Saúde e traduzir, para as diversas comunidades das periferias, um debate que acontece desde a ponta, com base em um movimento comunitário desde o bairro. Precisamos do SUS e, claro, de gestão e de qualificação.

A questão central do SUS é de financiamento. Por isso, temos lutado pela revogação da Emenda Constitucional 95, o chamado teto dos gastos, porque fragilizou muito a saúde, a educação e um conjunto de políticas sociais no país. Estima-se que, de 2016 para cá, a EC 95 já retirou R$ 22 bilhões e meio de recursos da saúde. Ou seja: precisamos revogar essa emenda constitucional para ter mais SUS e menos coronavírus.

Precisamos também olhar, com muito cuidado, para a militarização do Ministério da Saúde e o que isto representa de ameaça ao Conselho Nacional de Saúde. Esse órgão não atua apenas como um conselho por si só, mas ajuda a criar mobilização em rede, com o propósito de reforçar as instâncias estaduais e municipais.

No Brasil, hoje, os conselhos de saúde atuam em rede. O Conselho Nacional de Saúde ajuda conselhos de bairro, conselhos gestores de postos de saúde, e até o Conselho Estadual de Saúde, a cumprirem um papel importante. Existem comissões do Conselho Nacional de Saúde com atribuições previstas em lei, como, por exemplo, a Comissão de Finanças e Orçamento (Cofin), encarregada de avaliar o nível de investimentos em saúde do próprio governo federal. Essa atribuição, aliás, está respaldada na Lei Complementar 141, que regula o financiamento da saúde pública.

Na visão da Conam, como a Caixa Econômica Federal e os demais bancos públicos podem ajudar no processo de enfrentamento da pandemia?

Getúlio Vargas – O papel social da Caixa Econômica Federal é indiscutível, assim como o de outros bancos públicos. A Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa (Fenae), que representa o movimento nacional associativo dos empregados do único banco 100% público do país, tem sido uma histórica parceira dos movimentos urbanos e da Conam. Precisamos fortalecer a relação em defesa da Caixa, porque a Caixa é o banco do povo e dos que não têm banco. É a instituição que oferece, como nenhuma outra, acesso a uma diversidade de serviços.

Então a defesa da Caixa, e contra a privatização ou o fatiamento de partes estratégicas do banco, é uma reivindicação histórica do movimento comunitário e de bairro. O papel central da Caixa, dentro dos seus limites, é ajudar milhões de brasileiros que nunca tiveram conta bancária, para que, nesse momento de pandemia, possam ter acesso à renda básica emergencial. A equipe econômica do governo Bolsonaro tem de mudar a sua postura e garantir o acesso a esses recursos para a grande maioria da população em todo o Brasil.

Outra questão fundamental é a flexibilização. Enfim, a suspensão temporária das parcelas dos financiamentos habitacional e educacional. Diante da crise causada pelo coronavírus, o conjunto da população teve um baque muito grande na sua renda. Mesmo quem manteve a sua remuneração de uma forma ou de outra, e tendo outras despesas, em home office acaba trabalhando e gastando igual a outras situações. A Caixa, então, cumpre um papel muito importante na ajuda àqueles que mais precisam. Atua, inclusive, como o banco daqueles que nunca possuíram conta em uma instituição financeira.

Como conciliar a luta por cidades sustentáveis com a ausência de políticas de desenvolvimento urbano no país?

Getúlio Vargas – Desde a Emenda 95, que trava os investimentos em saúde e educação, o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) acabou, o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) foi descaracterizado, a mobilidade urbana e as políticas de desenvolvimento urbano ficaram, na prática, sem nenhum orçamento. Precisamos reverter algumas políticas. Isso só poderá ocorrer pela luta popular e por algumas ações diretas junto ao Congresso Nacional. Essas iniciativas podem aumentar a possibilidade de avançarmos nas muitas questões consideradas fundamentais para o movimento comunitário.

Nesse momento, a luta por cidades sustentáveis passa pelos “Fora Bolsonaro” e “Fora Mourão”, porque a política que esses caras querem implantar no país não dialoga com o que a Confederação Nacional das Associações de Moradores definiu em seus congressos e com o que o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) tem construído no último período em relação à questão urbana. O FNRU é um lugar de articulação de ideias e diálogo nacional, e reúne as entidades que lutam pela moradia popular no país.

A nossa luta é de resistência democrática, para que não percamos os direitos duramente conquistados, de 1988 até 2016. Trata-se de uma luta muito difícil, mas os movimentos populares urbanos vão seguir resistindo em defesa do direito à cidade e com base numa visão muito mais ampla. Nosso entendimento é de que o direito à cidade não significa só o teto, o ônibus ou o saneamento, mas se refere a todos os serviços e equipamentos públicos e ao direito de as pessoas sentirem-se seguras e ficarem bem. É, enfim, o direito à cidade como um todo. Não só o trabalhador ajudar a construir a cidade, mas depois poder usufrui-la em toda a sua plenitude.

No debate sobre a construção de cidades justas e democráticas, a sociedade brasileira precisa ser ouvida. Continuaremos na luta para que esse processo seja o mais abrangente possível.
 
O que caracteriza a atuação das entidades do movimento comunitário na atual conjuntura do país?

Getúlio Vargas – Para a Conam, conforme definido em seu último congresso, realizado em 2017, a atuação das entidades do movimento comunitário se dá com base em um tripé. Primeiro, a luta histórica pelo direito à cidade, com reivindicações sobre moradia, saneamento, mobilidade e programas urbanos, de uma maneira geral. Temos ainda, no Brasil, muitos despejos e muita violação de direitos.

Outra questão que nos mobiliza é a luta pela saúde e pelas políticas sociais. No último período, por exemplo, a Conam tem dedicado ainda mais energia na colaboração a suas afiliadas que participam de diversos conselhos estaduais e municipais de saúde, como também do Conselho Nacional de Saúde.

O terceiro e último ponto desse tripé é a luta contra o desemprego e pela retomada do projeto nacional de desenvolvimento para o país. Tudo isso deve vir combinado com todo um esforço pela unidade, na busca pela construção de amplas frentes de resistência democrática, na defesa da Caixa e do patrimônio público. Essas questões estão presentes no dia a dia do movimento comunitário.

Nesse momento, diante de um governo com tendências fascistas como o de Bolsonaro, o que permeia a nossa atuação é a defesa da democracia, é o direito à livre manifestação, é o direito às mobilizações das comunidades das diversas regiões. Entendemos que, hoje, a democracia encontra-se ameaçada. Daí a necessidade de construção de frentes amplas, não de uma frente única, mas diversas de cunho democrático e antifascista, que reúnam os setores progressistas da sociedade brasileira em defesa do povo e de seus direitos.

Em uma frente democrática, cabe todos os setores progressistas, mesmo que economicamente ou pontualmente algumas questões não sejam compartilhadas em relação aos ideais históricos do movimento comunitário. A Conam tem procurado fortalecer a Frente Brasil Popular e vem dialogando, em alguns locais, com todos os segmentos que reforçam o Estado Democrático de Direito. Temos procurado construir amplas frentes de resistência, subscrevendo documentos, materiais e notas que venham reafirmar esse compromisso com a democracia no Brasil, hoje tão ameaçada.

Foto: Pillar Pedreira/Agência Senado

Redação

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