O contrassenso da isenção na cobertura da crise ambiental
O ombudsman da Folha de S.Paulo, José Henrique Mariante se despediu de sua função propondo uma iniciativa que deveria se tornar um mantra para todos os jornalistas e a imprensa brasileira. Mariante convocou a imprensa para formar um consórcio jornalístico integrado por profissionais e empresas para, textualmente, “levar a sociedade a refletir e quantificar o quanto os próprios hábitos… protegem ou prejudicam o planeta”.
A proposta, se aceita, marcaria uma alteração fundamental em duas questões estratégicas na informação pública brasileira: implantaria a colaboração informativa em vez da concorrência na cobertura de um tema essencial para a sobrevivência humana; e deixaria de lado, pelo menos parcialmente, o dogma da isenção noticiosa, a famosa preocupação em ouvir os dois lados. Mariante não dá detalhes sobre sua proposta de consórcio jornalístico pelo meio ambiente, adiantando apenas que ele poderia ser parecido com o montado durante a pandemia para combater notícias falsas e a desinformação sobre a Covid 19.
A sucessão quase semanal de catástrofes em todo mundo comprova que já estamos em plena convulsão climática. Pensar em neutralidade num contexto ambiental como o que estamos vivendo equivale a praticar o absurdo de dar voz aos que defendem uma espécie de suicídio universal. Seria mais ou menos como só abandonar um navio afundando depois de consultar quem não quer se salvar. É impensável, mas é o que muitos jornalistas e órgãos da imprensa estão fazendo movidos pela inércia gerada por rotinas e regras que estão caindo em desuso.
Atender às necessidades informativas da sociedade implica hoje exatamente o oposto do dogma da isenção. Ou seja, dar às pessoas dados, fatos e ideias que contribuam para a sua sobrevivência. Isto significa uma opção clara em matéria de política editorial, seguindo o precedente já assumido pela imprensa em casos como a defesa da democracia ou do combate às notícias falsas.
Estamos sendo atropelados
São cada dia mais sólidas as evidências de que a crise ambiental é um fenômeno irreversível e cada vez mais intenso. No dia 2/6, a Folha de S.Paulo noticiou que o número recorde em inundações provocadas pelo transbordamento de rios quase duplicou entre 2014 e 2023 no Brasil, atingindo o total inédito de 314 enchentes. Uma progressão assustadora porque os dados se referem apenas às inundações que superaram as anteriores.
Nathyalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, think tank dedicado à política climática, mostrou como a velocidade com que estão ocorrendo as mudanças climáticas já supera a rapidez com que tentamos nos acostumar a elas. Em síntese, estamos sendo atropelados pela crise que nós próprios criamos, o que nos leva à perturbadora conclusão de que nossa sobrevivência está ameaçada.
O custo para escapar desta hecatombe já foi até calculado. No ano passado, a organização norte-americana Climate Policy Initiative estimou em 8,5 trilhões de dólares o valor a ser investido até 2030 em projetos da chamada economia verde para tentar frear a velocidade das mudanças climáticas. O cálculo foi considerado conservador, porque só a Europa precisará de quase um trilhão de dólares para garantir a sobrevivência de seus 448 milhões de habitantes nos próximos cinco anos.
A tirania do imediato
Estes dados se somam a uma pesquisa mostrando que os danos ambientais em todo o planeta são seis vezes maiores que os estimados até agora. Segundo o relatório The Macroeconomic Impact of Climate Change: Global vs. Local Temperature, produzido pelo National Bureau of Economic Research , dos Estados Unidos, uma elevação de 1 grau Celsius na temperatura média do nosso planeta causará uma queda de 12% no PIB mundial . Os dados mais recentes da ONU indicam que a Terra já está 1,8 grau C mais quente, logo o empobrecimento global será ainda maior do que o previsto pelo relatório.
Estes prognósticos assustadores já foram amplamente divulgados pela imprensa mundial, mostrando que o dilema do jornalismo na questão ambiental não é escassez de informação. É um problema de atitude. Em vez da posição de observadores imparciais da tragédia ambiental estamos colocados diante da necessidade de assumir a defesa do princípio da sobrevivência.
Nós, os profissionais do jornalismo, continuamos submetidos à “tirania do imediato” nas coberturas eleitorais, conforme definição cunhada pela organização Covering Climate Now (CCN – Cobrindo o Clima, Agora), autora do texto Crucial Climate Elections Around the World . Estamos dominados pela preocupação em resolver dilemas imediatos e ficamos sem tempo para pensar a médio e longo prazo. A CCN, fundada em 2019 com o apoio da Columbia Journalism Review, reúne cerca de 500 organizações jornalísticas ao redor do mundo e tem como meta inserir a questão ambiental na agenda diária da imprensa, a partir de um envolvimento direto dos jornalistas. Na verdade, um consórcio como o sugerido pelo ex-ombudsman da Folha.
Mas esta opção ainda não contagiou as redações e os profissionais do mundo inteiro e prova disto é que a imprensa mundial ainda não inseriu o tema como uma prioridade editorial e social num ano em que 24 países, onde vivem 4 bilhões de seres humanos estão realizando eleições. Depois de um 2023 que bateu recordes históricos de calor, a questão ambiental não aparece no ranking dos cinco temas mais abordados pela imprensa na maior parte dos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, o ambiente não está nem entre os dez assuntos mais tratados em jornais, rádios e telejornais, apesar de 56% da população achar que as tragédias naturais são cada vez mais frequentes e perigosas.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.
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