As abelhas da discórdia, por Fábio de Oliveira Ribeiro

É verdade que existe uma colmeia de abelhas no beiral coberto do telhado do imóvel da minha cliente. Mas não foi ela que a colocou lá.

As abelhas da discórdia

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Não é incomum topar com decisões judiciais impondo ao proprietário o dever de exterminar infestação de abelhas. A questão é quase sempre resolvida levando-se em conta apenas o direito de vizinhança e o mau uso da propriedade:

“Embora a Ré tenha sido alertada sobre a existência de abelhas em sua residência, deixou transcorrer demasiado tempo para a solução do problema. Passaram-se cinco meses desde o primeiro contato com o apicultor e o acidente. 

O artigo 186 do CC diz que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O direito de vizinhança cria para o proprietário o dever de arcar com a responsabilidade pelos danos decorrentes do mau uso da propriedade. A indenização por eventuais danos sofridos por vizinhos se dá pelo sistema da responsabilidade objetiva, dispensando a indagação sobre a ocorrência de culpa por parte do proprietário.” (TJSP, Apelação  nº 4011491-31.2013.8.26.0114, Relator Desembargador Pedro Baccarat)

Esta semana fui contratado para atuar num caso análogo.

Nos autos do processo  nº 1001706-91.2021.8.26.0704, em trâmite perante a 1ª Vara do JEC do Fórum Regional de Pinheiros – SP, a autora requereu que minha cliente seja condenada a eliminar a infestação de abelhas e a indenizar os danos morais que ela supostamente sofreu. 

É verdade que existe uma colmeia de abelhas no beiral coberto do telhado do imóvel da minha cliente. Mas não foi ela que a colocou lá. Por alguma razão que minha cliente ignora, as abelhas decidiram que aquele seria um excelente lugar para ser por elas colonizado. A colmeia cresceu naturalmente, sendo impossível avaliar seu tamanho.

Em sua petição inicial, o advogado da autora da ação chamou a colmeia de “… infestação de insetos”. E afirmou que a cliente dele “…teme pela saúde daqueles que podem ser alérgicos a picadas de insetos”. 

A percepção que a autora tem das abelhas parece ter sido modelada e distorcida por dois filmes de terror: “Abelhas Assassinas” (2002) e “O Enxame” (1978).

Essa percepção negativa, que foi criada pela indústria do cinema, legitima a destruição dos nichos ecológicos ocupados pelas abelhas. Em alguns países elas estão condenadas à extinção pelo uso intensivo de pesticidas. Os cientistas afirmam que se as abelhas realmente foram extintas o sistema ecológico pode entrar em colapso, provocando a ruína dos seres humanos https://super.abril.com.br/mundo-estranho/a-extincao-das-abelhas-pode-acabar-com-a-humanidade/ .

Não por acaso, a própria indústria do cinema começou a trabalhar para redefinir a percepção do público. No filme “O Destino de Júpiter” (2015), as abelhas convivem pacificamente com alienígenas exilados na Terra e são capazes de reconhecer a realeza da protagonista (muito embora ela seja apenas uma empregada doméstica).

Preocupado com essa questão e querendo ajudar a preservar as abelhas, o astro de cinema Morgan Freeman transformou o sítio dele num paraíso seguro para esses insetos https://conexaoplaneta.com.br/blog/morgan-freeman-transforma-sua-fazenda-em-um-santuario-para-as-abelhas/ . Ele foi aplaudido pela imprensa internacional, mas se fosse vizinho da autora ele provavelmente seria processado. 

Em 2008, a ONU lançou um programa de proteção das abelhas https://news.un.org/pt/story/2008/08/1228931-onu-lanca-programa-de-protecao-de-aves-e-abelhas-portugues-para-o-brasil . Em 2018, a ONU declarou o dia 20 de maio o Dia Mundial das Abelhas https://news.un.org/pt/story/2018/05/1623892 . 

No Brasil, as abelhas são protegidas pela Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1.998, que tutela os interesses difusos da fauna e flora. Essa norma federal se aplica inclusive às espécies de abelhas nativas e exóticas, prevendo multa e prisão para aquele que transportar, matar ou cometer maus tratos à flora. 

A legislação estadual paulista – digo isso pensando especificamente na  Resolução 11/2021 https://www.infraestruturameioambiente.sp.gov.br/2021/02/96971/ – também protege alguns tipos de abelhas. No website da Prefeitura de São Paulo é disponibilizada a seguinte informação aos cidadãos:

“As abelhas são consideradas insetos úteis porque:

– contribuem para a fecundação das flores, propiciando aumento da produção de frutos e grãos (polinização);

– produzem o mel e a geléia real, importantes fontes energética e nutritiva;

– produzem o própolis a partir de substâncias resinosas dos brotos e cascas de vegetais, o qual atua como antibiótico natural.” https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/vigilancia_em_saude/controle_de_zoonoses/animais_sinantropicos/index.php?p=4461  

No caso comentado, o Corpo de Bombeiros foi acionado pela dona do imóvel colonizado pelas abelhas. Mas a pessoa que a atendeu disse que não poderia fazer nada, pois a colmeia está em local de difícil acesso. Ela também chegou a consultar um especialista da USP, o qual avisou-a que a destruição de colmeia de abelha melífera seria crime ambiental.

Entendo que a obrigação que fundamenta a pretensão da autora do processo nº 1001706-91.2021.8.26.0704 inexiste. Além disso, ela não provou que as abelhas que colonizaram o telhado da casa da vizinha tem ferrão e que as ferroadas delas podem causar danos graves. 

Minha cliente não é dona na colmeia que se instalou naturalmente em sua casa. Ela não pode simplesmente se livrar dela sem correr o risco de sofrer sanções penais e administrativas, estaduais e eventualmente municipais. Isso não é uma desculpa esfarrapada, mas uma conclusão juridicamente plausível. De qualquer maneira, é evidente que o caso não pode ser resolvido apenas dentro dos limites impostos pelo direito de vizinhança (como ocorreu no processo decidido pelo TJSP mencionado no início).

É evidente que nenhum processo não pode ser resolvido apenas pelo advogado de uma das partes. Resolvi comentar esse caso por causa de seu valor não econômico. O Estado não pode proteger as abelhas (e a população em geral que depende da existência delas), sem que o direito de vizinhança sofra algum tipo de restrição. 

Assim como as abelhas aprenderam a conviver com os seres humanos numa cidade tão urbanizada e poluída quanto São Paulo, os paulistas deveriam evoluir para aceitar a convivência com as colmeias naturalmente espalhadas pela urbe. As abelhas não atacam as pessoas porque são malvadas e sim porque se sentem ameaçadas. Cada uma delas morre após soltar o ferrão no agressor que pretende afastar da colônia. Nós temos direito à vida, elas também (art. 225, da CF/88). 

As abelhas podem viver sem os seres humanos. Mas a ciência admite que o inverso não é verdadeiro. 

Numa situação normal, a melhor solução para a discórdia entre vizinhos é um acordo. Como fazer um acordo neste caso sem prejudicar as abelhas? Ninguém tem o direito de destruir a colmeia que surgiu naturalmente no telhado da minha cliente. É óbvio que o Judiciário pode mandar a parte removê-la, punindo-a se o comando não for obedecido. Mas a decisão nesse caso seria prejudicial às abelhas e os interesses delas (que são tutelados pela legislação ambiental) seriam prejudicados.

Quais são as providências que o juiz pode tomar nesse caso antes de decidir a lide?  

A primeira é mandar fazer um Laudo Pericial para esclarecer as dúvidas e determinar se aquelas abelhas são ou não protegidas pela legislação estadual. A segunda é oficiar o órgão federal que tutela os interesses difusos protegidos pela Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1.998, para que ele tome conhecimento da lide a fim de requerer o que entender adequado. Isso é importante, pois assim como minha cliente pode cometer um crime ao remover a colmeia, o juiz também está sujeito à Lei Penal ao decidir o caso.

O valor econômico do caso é pequeno. Mas o valor não econômico dele é imenso, pois estamos diante de um processo judicial em que está sendo debatido um tema que mobilizou a atenção da comunidade internacional. Além de ser objeto de preocupação da ONU, a proteção das abelhas também desperta o interesse da OEA https://fld.com.br/notas-publicas/2020/acao-da-america-latina-e-do-caribe-pelas-abelhas/ . 

A relevância constitucional e transcendência da matéria (a proteção das abelhas pelo art. 225, da CF/88 e o dever internacional do Brasil de participar do combate à extinção dessa espécie de inseto) certamente obrigará a parte que defende as abelhas a levar o caso ao STF. Mas isso só ocorrerá se a decisão do JEC do Fórum de Pinheiros não for satisfatória. 

Até a presente data o STF somente decidiu um caso envolvendo abelhas: RHC 61665/SP – São Paulo, Recurso em Habeas Corpus, furto de abelhas. A ação ajuizada pelo Partido Verde invocando a necessidade de proteger as abelhas para obrigar o Estado a limitar a autorização de comercialização de agrotóxicos. A ADPF 599 http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=415776&ori=1 ainda não foi submetida a julgamento. 

Na base de dados da Suprema Corte brasileira não existe registro de nenhum caso envolvendo a interpretação do art. 225, da CF/88, num conflito de vizinhança por causa de uma colmeia de abelhas. Talvez tenha chegado o momento do STF decidir essa questão. 

O regimento do STF confere exclusivamente ao PGR o poder dever de requerer a avocação de processo cuja solução acarrete “imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas”. 

“Art. 252. Quando, de decisão proferida em qualquer Juízo ou Tribunal, decorrer imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas, poderá o Procurador-Geral da República requerer a avocação da causa, para que se lhe suspendam os efeitos, devolvendo-se o conhecimento integral do litígio ao Supremo Tribunal Federal, salvo se a decisão se restringir a questão incidente, caso em que o conhecimento a ela se limitará.”

O caso comentado que foi aqui envolve apenas uma colmeia. Mas as decisões judiciais resolvendo disputas de vizinhança por causa de abelhas pipocam em todo o país, sempre com o mesmo conteúdo (a prevalência das regras do Código Civil que regulam o direito de vizinhança em detrimento da proteção de uma espécie ameaçada). 

Eis aqui o “…imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas”. 

A avocação e solução de uma pequena disputa como a que envolve minha cliente ter um grande impacto nacional, especialmente se o STF decidir que as regras de proteção ambiental prescritas na Constituição Cidadã devem limitar a aplicação do Código Civil quando a disputa judicial entre vizinhos tiver como motivo uma colmeia de abelha. 

Em razão do elevado valor não econômico caso comentado, após contestar o pedido, resolvi protocolar uma representação no STF requerendo que “…o Procurador Geral da República intimado da presente para analisar o processo nº 1001706-91.2021.8.26.0704 em trâmite perante a 1ª Vara do JEC do Fórum Regional de Pinheiros – SP,  para, se for o caso, requerer que o mesmo seja avocado e decidido pelo STF…”. Caso seja acolhida, a Suprema Corte brasileira poderá decidir se numa disputa de vizinhos envolvendo colmeia de abelha melífera as regras constitucionais que protegem a fauna e a flora limitam ou não a aplicação do Código Civil. 

A representação acima mencionada foi recebida pelo STF sob nº 53481/2021. Alea jacta est…

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

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  1. Apis mellifera africaniza, híbrida da Europa com A.m.Scutellata africana foi introduzida no Brasil em 1957 pelo pesquisador Kerr da USP. Hoje Kerr é o pai da apicultura Brasileira, uma das maiores em produtividade do mundo. Possuimos uma abelha com a resistencia e rusticidade da Africana e produção da Européia. O resgate de abelhas em ambiente urbano é programa usual de apicultores e universidades. O meu programa, que executo na minha iniversidade chama-se SOS abelha. Elas são capturas, colocadas em coméias próprias e transportada para o apiário da nossa universidade

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