Liberdade de imprensa: uma foto e seu papel na história, por Nelson Oliveira

A Culpa é da Foto estreou em setembro de 2015, ao ser exibido no 48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Recebeu o prêmio de melhor curta-metragem pelo júri oficial com o Troféu Brasília.

Foto: J. França – Fonte: Agência Senado

da Agência Senado

Liberdade de imprensa: uma foto e seu papel na história

por Nelson Oliveira

Há 37 anos, a rampa do Palácio do Planalto, em Brasília, foi o palco de um dos mais singulares gestos em prol da liberdade de imprensa no país: o protesto dos fotojornalistas credenciados na Presidência da República contra restrições ao trabalho da cobertura diária, em especial das audiências no gabinete do então presidente, o general João Baptista Figueiredo. Na tarde do dia 24 de janeiro, quando o militar desceu a rampa do palácio, encontrou os fotógrafos de braços cruzados e suas câmeras no chão.

A manifestação foi registrada por J. França, um dos profissionais com credencial no palácio, de modo que a imagem daquele momento pudesse ser levada ao conhecimento do público, como de fato foi, ao ser estampada nas páginas e telas de vários veículos de comunicação.

Ao fundo, da esquerda para a direita: Moreira Mariz, Antônio Dorgivan, Adão Nascimento, Cláudio Alves, Sérgio Marques, Julio Fernandes Francisco Gualberto, Sérgio Borges, Beth Cruz, Élder Miranda e Vicente Fonseca, o Gaúcho. Em primeiro plano: presidente João Figueiredo e Leitão de Abreu, ministro-chefe do Gabinete Civil. Foto: J. França

Uma das testemunhas desse que terá sido o único protesto de fotógrafos no Brasil contra um presidente, pelo menos de tal magnitude e ambientado na Capital da República, foi outro fotojornalista, André Dusek, mais tarde um dos realizadores do documentário A Culpa é da Foto. Presidente da União dos Fotógrafos de Brasília e não credenciado na Presidência, Dusek solidarizou-se com o protesto e, por essa razão, não o registrou. Três décadas depois, juntou-se aos também fotógrafos Eraldo Peres e Joédson Alves na condução do filme que resgataria o episódio e o levaria ao público em 2015.

Conforme relatam no documentário aquelas testemunhas oculares da história, as relações entre Figueiredo e a imprensa, principalmente os fotógrafos, não iam nada bem na reta final do regime militar, que completaria 20 anos em março seguinte. Entre proibições e brechas que eram aproveitadas, como a de uma sessão de cinema à qual Figueiredo compareceu de gesso no braço, o balanço era negativo para os fotojornalistas, que chegaram mesmo a temer por seus postos de trabalho, uma vez que a Presidência escalara um fotógrafo contratado pelo governo para suprir as redações com imagens das audiências rotineiras.

A gota d’água para o estremecimento deu-se quando o então deputado federal Paulo Maluf (PDS) — que viria a ser um ano depois, e contra a vontade de Figueiredo, o candidato do governo na eleição indireta para presidente — provocou o general durante uma audiência que fotógrafos e cinegrafistas surpreendentemente puderam cobrir.

“Sorria, presidente”, disse Maluf a um mal-humorado Figueiredo, quando percebeu a presença dos profissionais da imagem. O presidente, que preferia o coronel reformado e ex-ministro Mario Andreazza como candidato do PDS, respondeu de forma ríspida: “Estou na minha casa e fico como eu quero”. Os fotógrafos então passaram o teor da conversa aos repórteres credenciados no palácio e às redações. O diálogo foi publicado, gerando grande irritação em Figueiredo, de modo que este barrou de uma vez a cobertura das audiências.  A volta dos fotógrafos ao gabinete presidencial só foi possível depois de Figueiredo digerir, com dificuldades, a manifestação na rampa.

— A gente não engolia sapo. A gente reagia — relembra Moreira Mariz, atualmente na equipe de fotojornalistas da Agência Senado, mas então na Folha de S.Paulo e um dos participantes do protesto.

De acordo com ele, os fotojornalistas, de forma democrática, atuaram em defesa da democracia contra um ato autoritário.

— O presidente teve que voltar atrás. Até porque não foi só uma vez que deixamos as câmeras no chão, mas três vezes — relembra.

Moreira Mariz: “Os fotógrafos estavam na linha de frente e pegaram a barra mais pesada, mas reagiram a um ato antidemocrático” (foto: Pedro França/Agência Senado)

Segundo conta no filme o então cinegrafista da Rede Globo Elder Miranda, o presidente chegou a mandar um recado aos jornalistas: passaria chutando as máquinas.

A única mulher no grupo, Beth Cruz, à época na Agil Fotojornalismo, explica no documentário a reação de Figueiredo, que ficou “de boca aberta” ante a cena, pela ousadia de um ato em plena ditadura militar, na época do “prendo e arrebento”, frase célebre do general. Ela entende, porém, que o gesto deixou “um legado”: o de que é possível se colocar mesmo em contextos de muita restrição. E mostrou o quanto a imprensa é necessária à pluralidade de visões, o que não pode se dar quando o que o público recebe é só a versão oficial dos fatos.

Para Mariz, os fotógrafos tiveram um papel histórico na ampliação da liberdade de imprensa, já que estavam na linha de frente e pegavam “a barra mais pesada”. Em seu depoimento ao filme, Dusek chama a atenção para o fato de que os militares descobriram nos fotojornalistas algo que eles não imaginavam como parte de suas vidas profissionais: ouvidos e boca.

— O papel da imprensa é o de atuar como janelas para a evolução da sociedade — diz Eraldo Péres, fotógrafo da Associated Press (AP) com 40 anos de profissão e coautor de A Culpa é da Foto.

Ele lamenta a onda atual de desprezo pelo jornalismo profissional e a produção e difusão avassaladoras de notícias falsas, além da atuação de pessoas na internet sem compromisso com a apuração e a checagem dos fatos.

— Há políticos que negam a política e hostilizam a imprensa para criar outro tipo de informação, que não é necessariamente correta. Jornalistas não detêm a verdade, mas buscam a verdade como elemento para que a sociedade possa fazer seus julgamentos. No entanto, estamos sendo hostilizados e trabalhamos com medo de agressões — alerta Péres.

Particularmente no que se refere à cobertura da Presidência da República, o fotógrafo diz estar desapontado em razão de um fechamento que se pensava superado depois da redemocratização e que retornou, embora em outros contornos.

— O documentário está muito atual. Não podemos nos movimentar no palácio, há pouquíssimas situações, em geral cerimônias, que podemos registrar, e não há nenhuma interlocução conosco. Em frente ao Palácio da Alvorada, pessoas nos abordam, examinam nossos crachás e nos perguntam se somos “da imprensa lixo”. Falta um posicionamento das autoridades em relação a isso. Infelizmente o presidente também xinga a imprensa.

Jornalistas no Palácio do Planalto, em maio de 2020 (foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Assim como Mariz, Péres vê o fotógrafo como “ponta de lança” do jornalismo em qualquer área de cobertura.

— Somos nós que estamos perto das bombas quando elas explodem— assinala o repórter fotográfico da AP.

Na política ele cita, entre as fotos que contribuíram decisivamente para informar e advertir a sociedade sobre os riscos do autoritarismo, a imagem captada por Evandro Teixeira na chamada Sexta-Feira Sangrenta (22 de junho de 1968) no Rio de Janeiro: perseguido e agredido violentamente pela polícia durante protesto no centro da cidade, um estudante paira no ar. Em seguida irá bater a cabeça no meio-fio, conforme o testemunho do fotógrafo, que teve de fugir para não ser ele próprio mais uma vítima da repressão. Nada se sabe sobre o destino do estudante ao final daquela jornada, na qual morreram 28 pessoas. Em dezembro do ano passado, essa foto foi transformada em memes por apoiadores de Jair Bolsonaro. Num deles, a figura do presidente, retirada do contexto original, um jogo de futebol, é quem derruba o estudante.

Mesmo em outras situações, em que não há um confronto explícito de poder, os olhos do fotojornalista podem revelar ao mundo realidades incômodas, como foi o caso da foto de um menino do Sudão acossado por abutres em 1993. Tirada por Kevin Carter, fotojornalista sul-africano, que depois de fazer a imagem espantou o abutre, foi publicada pelo New York Times e ganhou o Prêmio Pulitzer, tendo contribuído para conscientizar o mundo sobre os males da guerra e do colonialismo na África.

Ao fotojornalismo também é dado o crédito para a repercussão ruim dos danos trazidos à população vietnamita pelos bombardeios norte-americanos, mas não só a ela, também às próprias tropas dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã e outras depois do trágico conflito no sudeste asiático.


Documentário

A Culpa é da Foto estreou em setembro de 2015, ao ser exibido no 48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Recebeu o prêmio de melhor curta-metragem pelo júri oficial com o Troféu Brasília. Em 2016, ficou entre os nove documentários indicados para a Academia de Hollywood durante o 21º Festival Internacional de Documentários, no qual concorreram 1.700 filmes. Em seguida, recebeu o troféu Cinememória de melhor documentário durante o 5º Curta Brasília — Festival Internacional de Curta-Metragem.

A obra é uma realização da Photo Agência, em parceria com a HC Lara Produções e Line Pine Pictures. Teve produção original de Eraldo Péres, história e direção de conteúdo de André Dusek, direção de fotografia de Joédson Alves e trilha sonora original de Eduardo Dusek.


Reportagem: Nelson Oliveira Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy Edição e tratamento de fotos: Ana Volpe Videografismo: Aguinaldo Abreu Foto de capa:  J. França

Fonte: Agência Senado

Redação

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