Vassourinhas, por Homero Fonseca

Vale a pena re-viver: hino do Carnaval de Pernambuco é um espetáculo multissensorial ímpar

Nas ladeiras de Olinda (foto Arquimedes Santos/PMO) ou planuras do Recife, uma festa dionisíaca

Vassourinhas

por Homero Fonseca

Quem já brincou o Carnaval no Recife ou Olinda, sabe. Um clube desfila, rua lotada, gente fantasiada, ou não, dançando. De repente, a um sinal do maestro, a orquestra emite os primeiros acordes da música. Numa fração de segundos, um arrepio coletivo eriça a pele da multidão. E quando a banda ataca com Vassourinhas, braços se levantam, bocas se abrem num brado de júbilo e os corpos suados como que recebem uma descarga elétrica: pulam, rodopiam, se contorcem, se esbarram, numa onda frenética, fervente. É o frevo (de frever, corruptela do verbo ferver), um espetáculo dionisíaco,  multissensorial: sonoro, visual, táctil e até olfativo (cheiro de suor misturado com o de lança-perfume ou loló).

Se algum “estrangeiro” desconfiar que exagero, leia o que disse Mário de Andrade (sobre o frevo em geral, mas especialmente válido para Vassourinhas): “A vibração paroxística do frevo é realmente uma coisa assombrosa. É, enfim, um verdadeiro allegro num presto nacional.  É, sem dúvida, o entusiasmo, a ardência orgíaca, mais dionisíaca de nossa música nacional.”[1]

            Esse hino do Carnaval pernambucano foi composto há mais de um século – exatamente em 1909 – por Teodoro Matias da Rocha (música) e Joana Batista Ramos (letra) em homenagem ao Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas, fundado em 1889, num mocambo, no bairro de Beberibe. Ambos negros, de origem humilde; ele, maestro; ela, dada como empregada doméstica. No ano seguinte, venderam os direitos autorais da música ao clube, que a adotou como seu hino. E não era frevo, e sim uma marcha carnavalesca, tanto que seu título original era Marcha nº 1.

            O gênero musical hoje conhecido como frevo nasceu num processo que levou décadas, entre fins dos anos 1800 e começos dos 1900. Como se sabe, sua origem estava nos dobrados e polcas tocados pelas bandas militares e civis que, no Carnaval, animavam a festa da ralé (os ricos e classe média remediada se enclausuravam nos clubes sociais ou desfilavam no alto de carros inicialmente puxados a cavalo e depois motorizados). Na frente das bandas, juntavam-se os capoeiras, numa dança enérgica e violenta – não raro descambando para o conflito aberto no encontro dos clubes pedestres. A fusão dos dobrados, polcas e ritmos africanos resultou na marcha carnavalesca que evoluiu no frevo de rua, mais acelerado que os dobrados e com ritmo mais sincopado.

Vassourinhas, em sua origem, se chamava Marcha nº 1. Com toda certeza tinha um andamento mais lento. Foi inspirada na cantiga de roda “Se essa rua fosse minha”. A letra de Joana Batista Ramos, inclusive, é uma adaptação para o espírito do clube, cujo nome se refere aos varredores de rua (hoje chamados garis, por influência carioca). Um trecho da letra é bem explícito: “ Somos nós os Vassourinhas / Todos juntos em borbotão / Vamos varrer nossa cidade / Com cuidado e precisão.” Segundo o pesquisador e professor americano Larry Crook, “a peça foi possivelmente a primeira das marchas carnavalescas cantadas a se tornar um frevo.”[2] Nesse processo, a composição origem teve suprimidas as palavras cantadas, pois o frevo de rua é estritamente instrumental.

Em 1944, a orquestra do maestro Nélson Ferreira gravou nos estúdios da Rádio Clube de Pernambuco a versão que daria a Vassourinhas sua feição atual, incorporando à segunda parte as famosas (oito) variações do saxofonista Félix Lins de Albuquerque (Felinho), maestro, professor e flautista da Orquestra Sinfônica do Recife.  Embora não tendo sido lançada comercialmente em disco (o que somente ocorreria em 1956, pelo selo Mocambo, da gravadora pernambucana Rozenblit), essa versão, difundida pela emissora, explodiu no Carnaval do Recife daquele ano e marcou definitivamente a forma de execução da música: Felinho praticamente re-compôs Vassourinhas, pois é impensável ouvir o mais célebre frevo hoje sem as variações da segunda parte, sejam um cover das fixadas por ele ou novas criadas pelos executantes em tudo quanto é instrumento.

Ver, ouvir e balançar (impossível ficar parado) Vassourinhas a céu aberto, no Recife ou Olinda é um espetáculo ímpar, imperdível (depois da pandemia). Por enquanto, ouçam a gravação fundadora de Felinho e a mais elaborada das versões modernas pela Spok Frevo Orquestra:

     Orquestra Nelson Ferreira (1956):

     Spok Frevo Orquestra e convidados (2008):

REFERÊNCIAS:


[1] Apud Valdemar de Oliveira, citado porLeonardo Dantas no artigo “Da existência do Frevo e do Passo”. Site Guerreiros do Passo, junho de 2012: www.guerreirosdopasso.com.br/2012/06/da-existencia-do-frevo-e-do-passo.html

[2] Larry Crook, Music of Northeast Brazil. New York: Routledge, 2009.

Redação

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